Arquivo da categoria: Ecologia

Revelados os gostos da língua-de-vaca! Planária gigante é encontrada comendo caracol gigante!

por Piter Kehoma Boll

Polycladus gayi é uma planária terrestre icônica encontrada no Chile e conhecida localmente como lengua de vaca (língua de vaca). Apesar de ser a maior planária terrestre do chile e uma das primeiras planárias terrestres descritas, ainda em 1845, não sabemos quase nada de sua ecologia.

Mas as coisas estão mudando! Nos últimos meses, dois espécimes foram encontrados se alimentando na na natureza e, em ambos os casos, a presa era a mesma espécie, o caracol negro gigante, Macrocyclis peruvianus, o maior caracol do Chile. Ambas as observações ocorreram em áreas de proteção do Chile, Parque Nacional Villarrica e Parque Nacional Alerce Costero, e foram registradas por pessoas não especialistas visitando as áreas. Mais uma descoberta importante que aconteceu graças à ciência cidadã!

A planária terrestre Polycladus gayi agarrada ao caracol Macrocyclis peruvianus e se banqueteando em sua carne. Foto de Yerko Lloncón.*

Após quase dois séculos desde que a planária P. gayi foi descoberta, finalmente sabemos algo sobre sua posição na cadeia alimentar! E, claro, isso também nos ajuda a ver o caracol M. peruvianus de uma nova perspectiva, já que esse também parece ser o primeiro registro de um de seus predadores! Apesar de caracóis serem um item comum na dieta de planárias terrestres, nem todas as espécies se alimentam deles, e não podemos supor que ambos os grupos estão sempre diretamente conectados na teia alimentar.

Vem ver como a planária ficou gordinha depois de comer o caracol inteiro!

Ainda há muito para descobrir sobre essas duas criaturas chilenas tão únicas, e a parceria entre pesquisadores e o público em geral é uma forma importante de acelerar o acúmulo de conhecimento sobre as criaturas ao nosso redor!


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Referências:

Boll PK, Lloncón Y, Almendras D (2023) Records of the land planarian Polycladus gayi (Tricladida, Geoplanidae) preying on black snails Macrocyclis peruvianus (Gastropoda, Macrocyclidae). Austral Ecology. https://doi.org/10.1111/aec.13430


*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição Não Comercial e Compartilhamento Igual 4.0 Internacional.

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Arquivado em Comportamento, Ecologia, moluscos, platelmintos

O mais rico nem sempre é o mais comum: uma lição de angiospermas de uma formação do Cerrado

por Piter Kehoma Boll

A complexidade dos ecossistemas é sustentada por uma variedade de relações que diferentes espécies possuem uma com a outra e que são frequentemente adaptadas ao ambiente em que vivem. Apesar de geralmente pensarmos nas relações com base em conflitos, como predação, parasitismo e competição, relações benéficas são quase tão importantes e comuns, especialmente quando pensamos em plantas com flores, já que muitas delas dependem de animais para polinizá-las e dispersar suas sementes.

As diferentes formas através das quais as plantas são polinizadas são chamadas síndromes de polinização e incluem anemofilia (polinização pelo vento), melitofilia (por abelhas), falenofilia (por mariposas), esfingofilia (por mariposas esfingídeas), psicofilia (por borboletas), miofilia (por moscas), cantarofilia (por besouros), quiropterofilia (por morcegos) e ornitofilia (por aves), e há plantas generalistas também, cujas flores podem ser polinizadas por vários animais diferentes. Agora considerando a forma como as plantas têm suas sementes dispersadas, a classificação geralmente considera apenas três categorias: zoocoria (por animais), anemocoria (pelo vento) e autocoria (pela própria planta, porque ninguém tem paciência pra esperar bicho ou vento) .

Aves estão entre os muitos animais que podem polinizar flores (A) e dispersar sementes (B). Fotos de Cássio Cardoso Pereira.*

Frequentemente pensamos em abelhas e borboletas como os polinizadores mais comuns. De fato abelhas são de longe os mais comuns e importantes, mas na verdade pouquíssimas plantas dependem exclusivamente de borboletas para serem polinizadas. Moscas, besouros, mariposas e mesmo aves e morcegos frequentemente polinizam mais espécies de plantas que borboletas num dado ecossistema. Independente de o ecossistema ser uma floresta densa, um campo aberto ou uma savana arbustiva, abelhas são sempre aquelas fazendo o trabalho para a maioria das espécies de plantas.

Agora, em relação à dispersão de sementes, a configuração dos ecossistemas é muito mais importante e causa mudanças drásticas na frequência de síndromes de dispersão. Em áreas abertas como campos e savanas, anemocoria é frequentemente considerada a síndrome de dispersão predominante. Em florestas, no entanto, a zoocoria dominaria, visto que não há vento suficiente para soprar as sementes por aí.

Quando fazemos um levantamento das síndromes de dispersão em florestas, descobriram que a maioria das plantas tem, de fato, suas sementes dispersadas por animais. Contudo um levantamento em campos e savanas pode trazer resultados que parecem estranhos a princípio. Às vezes todas as três síndromes de dispersão ocorrem na mesma proporção e às vezes muitas espécies continuam sendo dispersadas por animais, enquanto o vento só é importante para umas poucas. Estávamos errados em nossas previsões então? Não necessariamente.

Um problema é que a maioria dos estudos, quase todos na verdade, só comparam as síndromes de polinização e dispersão pelo número de espécies na área. Contudo as espécies vegetais não são distribuídas uniformemente no ambiente. Algumas espécies possuem um montão de indivíduos, sendo dominantes nos ecossistemas, enquanto outras ocorrem em números muito menores. A proporção de síndromes de dispersão se mantém a mesma se considerarmos o número de indivíduos e não de espécies? Não necessariamente.

Um estudo recente avaliou as síndromes de polinização e dispersão de plantas numa área do Cerrado brasileiro, mais especificamente uma área de Cerrado Rupestre (uma das fisionomias menos conhecidas do Cerrado). Os pesquisadores não apenas consideraram a distribuição das síndromes de acordo com o número de espécies, mas também de acordo com o número de indivíduos. A maioria das espécies de plantas foi polinizada por abelhas, como esperado, e a maioria dos indivíduos também foi polinizada por abelhas. Contudo enquanto a maioria das espécies teve as sementes dispersadas por animais, a maioria dos indivíduos teve as sementes dispersadas pelo vento. Isso significa que, apesar de a maioria das espécies depender de animais para dispersar as sementes, elas tendem a ocorrem em densidades baixas, com poucos indivíduos por área. Por outro lado espécies dispersadas pelo vento possuem uma densidade muito alta, de forma que a maioria dos indivíduos numa área pertence a elas.

Quando consideramos as síndromes de polinização e dispersão de acordo com espécies ou indivíduos, o quadro pode mudar drasticamente. Apesar de a maioria das espécies ser dispersada por animais nesse fragmento de cerrado (B), a maioria dos indivíduos na verdade pertence a espécies dispersadas pelo vento (D). Créditos a Pereira et al. (2022).*

Quando consideramos a distribuição de síndromes de dispersão apenas de acordo com espécies, os resultados parecem contradizer o que era esperado para uma savana, mas olhar de uma perspectiva de indivíduos torna claro que o padrão segue as previsões.

Ter noção disso é importante por muitas razões, especialmente por permitir programas de manejo adequados para proteger tais áreas. A estabilidade de um ecossistema não depende apenas da riqueza de espécies, mas também da abundância de cada espécie. Ao analisarmos a distribuição de síndromes de dispersão de ambas as perspectivas, podemos ver que o vento é o principal dispersor neste ecossistema como um todo, mas os animais ainda são dispersores importantes para manter a riqueza de espécies alta e, em contrapartida, a alta riqueza de espécies vegetais é importante para sustentar as espécies animais. Isso torna nosso entendimento do sistema como um tudo bem diferente do que seria a partir de dados de espécies apenas. Agora esperemos que estudos futuros comecem a abordar esse assunto de ambas as perspectivas também.

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Referências:

Kuhlmann, M., & Ribeiro, J. F. (2016). Evolution of seed dispersal in the Cerrado biome: ecological and phylogenetic considerations. Acta Botanica Brasilica30, 271-282. https://doi.org/10.1590/0102-33062015abb0331

Pereira, C. C., Arruda, D. M., Soares, F. D. F. S., & Fonseca, R. S. (2022). The importance of pollination and dispersal syndromes for the conservation of Cerrado Rupestre fragments on ironstone outcrops immersed in an agricultural landscape. Neotropical Biology and Conservation17(1), 87-102. https://doi.org/10.3897/neotropical.17.e79247

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*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição 4.0 Internacional.

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Arquivado em Botânica, Ecologia

Onças ajudam veados a comer ossos, ou: a teia alimentar é doida!

por Piter Kehoma Boll

Nós nos acostumamos a pensar na cadeia alimentar, ou mais precisamente na teia alimentar, como algo consideravelmente regular e fluindo numa só direção: plantas sintetizam nutrientes por fotossíntese, herbívoros comem plantas, carnívoros comem herbívoros e tal. Mas a natureza não funciona tão regularmente como pensamos e às vezes pode parecer bem louca.

Apesar de muitos animais serem de fato estritamente herbívoros, isso não é exatamente o caso para muitos ungulados que costumamos pensar como veganos, como os ruminantes. Na verdade não é tão raro encontrar ruminantes mastigando ossos de animais mortos, às vezes quando esses ainda possuem carne presa a eles. A principal razão para herbívoros comerem ossos é para adquirir minerais, como cálcio, que são importantes não só para crescer ossos e chifres ou galhadas, mas também para conduzir impulsos nervosos e outras funções bioquímicas.

Agora observações de uma única armadilha fotográfica no Parque Nacional Santa Rosa na Costa Rica registrou mais de cem eventos de cariacus ou veados-de-cauda-branca (Odocoileus virginianus) mastigando ossos de carcaças de tartarugas numa praia. Os cariacus incluíam machos com galhadas em crescimento, fêmeas dando de mamar e filhotes em crescimento, todos os quais precisam de quantidades adicionais de cálcio para crescer galhadas, repor o cálcio perdido no leite e crescer ossos, respectivamente.

Tá, esses veados comem um monte de ossos de tartarugas. E daí? Bom, o motivo de haver tantos ossos disponíveis para eles se banquetearam é porque onças-pintadas predam tartarugas que chegam à praia para desovar. Onças estão entre os predadores mais importantes dos neotrópicos e veados certamente são algumas de suas presas. Enquanto a presença de onças pode ser uma ameaça para a vida do cariacu, elas também são essenciais em fornecer os ossos dos quais os cariacus se alimentam para permanecerem saudáveis.

Onças comem tartarugas na praia e deixam seus ossos para trás. Mais tarde os cariacus vêm comer os ossos que seu principal predador deixou como presente. “De onça para cariacu, com amor, para que você possa crescer saudável e me alimentar mais tarde”. Créditos to Morera et al. (2022).*

Isso quase vira a teia alimentar de cabeça para baixo, né? Ou pelo menos adiciona algumas voltas bem estranhas nela.

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Referência:

Morera, B., Montalvo, V., Sáenz-Bolaños, C., Cruz-Díaz, J. C., Fuller, T. K., & Carrillo, E. (2022). Osteophagia of sea turtle bones by white-tailed deer (Odocoileus virginianus) in Santa Rosa National Park, northwestern Costa Rica. Neotropical Biology and Conservation17(2), 143-149. https://doi.org/10.3897/neotropical.17.e87274

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Arquivado em Comportamento, Ecologia

Um superbesouro que não está nem aí para envenenamento por cianeto

por Piter Kehoma Boll

De forma a tentar evitar predadores, muitas espécies desenvolvem poderosas toxinas que prejudicariam qualquer um tentando comê-las, às vezes até matando. No entanto os predadores podem contra-atacar desenvolvendo uma forte resistência às defesas da presa, às vezes a níveis espetaculares.

Milípedes, ou piolhos-de-cobra, são conhecidos como presas de sabor desagradável que evoluíram uma variedade de toxinas para deter predadores. Não obstante, algumas espécies encontraram maneiras de lidar com as defesas dos milípedes, tornando as pobres criaturas desesperadas pelo desenvolvimento de novas estratégias de sobrevivência.

Na América do Norte, besouros carabídeos do gênero Promecognathus são predadores especialistas em milípedes. A espécie Xystocheir dissecta, uma de suas principais presas, produz cianeto como defesa química. Cianeto é um composto muito tóxico para a maioria das formas de vida.

O milípede produtor de cianeto Xystocheir dissecta. Foto do usuário mhertel do iNaturalist.*

Num estudo recente, 18 espécies diferentes de besouros carabídeos foram expostas a cianeto de sódio (NaCN) em laboratório para terem sua resistência verificada. Enquanto a maioria das espécies sucumbiu em menos de 10 minutos quanto exposta a 15 mg de NaCN ou menos, três espécies pouco se lixaram mesmo para quantidades tão altas quanto 100 mg. Estas três espécies são Promecognathus crassus, P. laevissimus e Metrius contractus. Enquanto as duas espécies de Promecognathus se alimentam de Xystocheir dissecta, Metrius contractus não o faz.

Promecognathus laevissimus, o besouro-“eu comeria cianeto no café”. Foto de Eddie Dunbar.*

Em outro experimento, as espécies foram expostas de 100 mg de cianeto de potássio (KCN) por até duas horas. Enquanto M. contractus permaneceu ativo durante a primeira hora, todos os espécimes sucumbiram em menos de duas horas, mas, após 120 min, alguns espécimes de Promecognathus laevissius ainda estavam andando por aí como se nada estivesse acontecendo.

Metrius contractus, resistindo ao cianeto só de zoa. Foto do usuário tparkeressig do iNaturalist.*

Este estudo é a primeira evidência de predadores resistentes a cianeto. Enquanto este superpoder em P. laevissimus é facilmente explicado pelo seu comportamento predatório, a alta resistência de M. contractus ainda é um mistério, já que esta espécime não é especializada em milípedes, apesar de ser possível que os coma como comida alternativa, especialmente espécimes doentes ou machucados. Ambas as espécies, no entanto, são resistentes a quantidades de cianeto bem acima do que eles encontrariam em qualquer milípede. É realmente um superpoder.

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Referência:

Weary BP, Will KW (2020) The Millipede-Predation Behavior of Promecognathus and Exceptional Cyanide Tolerance in Promecognathus and Metrius (Coleoptera: Carabidae). Annals of the Entomological Society of America. https://doi.org/10.1093/aesa/saaa023

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Arquivado em Comportamento, Ecologia, Entomologia, Evolução, Zoologia

Uma dieta balanceada pode te matar mais cedo… se você for uma planária terrestre

por Piter Kehoma Boll

Há uma coisa que eu deveria fazer mais frequentemente aqui, que é apresentar minha própria pesquisa para os leitores do blog, então hoje farei exatamente isso.

Como vocês devem saber, o grupo de organismos com que trabalho é a família Geoplanidae, comumente conhecidas como planárias terrestres. Aqui no Brasil, o gênero com mais espécies é Obama, do qual falei em posts anteriores. Este gênero se tornou consideravelmente famoso após uma de suas espécies, Obama nungara, se tornar invasora na Europa, o que chamou a atenção do público especialmente por causa do nome curioso do gênero, apesar de ele não ter nada a ver com o ex-presidente dos Estados Unidos.

Enfim, durante meu mestrado, ficou claro que espécies do gênero Obama se alimentam de invertebrados de corpo mole, especialmente lesmas e caracóis, apesar de algumas espécies também se alimentarem de minhocas ou mesmo outras planárias terrestres. Obama nungara, por exemplo, se alimenta dos três grupos, apesar de parecer preferir minhocas.

Um espécime de Obama anthropophila com suas sardas testiculares. Foto minha, Piter K. Boll.*

Um espécie de Obama comum em áreas urbanas do sul do Brasil é Obama anthropophila, cujo nome, significando “amante de humanos” é uma referência a este hábito precisamente. Esta espécie possui uma cor dorsal uniformemente marrom-escura, às vezes manchada pelos testículos maduros aparecendo como manchas escuras na primeira metade do corpo. A dieta desta espécie inclui caracóis, lesmas, nemertíneos e outras planárias terrestres, especialmente do gênero Luteostriata, e mais especialmente da espécie Luteostriata abundans, que ocorre muito comumente em áreas urbanas também.

Assista Obama anthropophila capturando diferentes presas.

Assim eu me perguntei… se O. anthropophila se alimenta de diferentes tipos de invertebrados, isso significa que cada tipo fornece nutrientes diferentes, de forma que uma dieta mista é necessária ou mais benéfica que uma composta de um só tipo de presa? Para averiguar isso, dividi espécimes adultos de O. anthropophila em três grupos, cada um recebendo uma dieta diferente:

Grupo Dela: alimentado apenas com a lesma Deroceras laeve
Grupo Luab: alimentado apenas com a planária Luteostriata abundans
Grupo Mixed: alimentado com ambas as presas de forma alternada

Os resultados não foram o que eu esperava. O grupo Mixed apresentou uma taxa de sobrevivência menor que os grupos com dieta de só uma presa. Outro aspecto interessante foi que o grupo Mixed apresentou uma tendência a passar o dia de receber uma lesma sem comer, comendo apenas as planárias após alguns dias recebendo as presas alternadamente.

Baseado na hipótese de que uma dieta mista é mais nutritiva, eu esperava que o grupo Mixed apresentasse um desempenho melhor, ou ao menos similar ao dos grupos de dieta única se não houvesse aumento no valor nutricional com uma presa adicional. Contudo os resultados indicam que uma dieta mista pode ser ruim para a planária, ao menos se o animal precisa comer algo diferente em cada refeição.

Não sabemos o que causa isso, mas minha ideia é de que talvez diferentes presas demandem diferentes processos metabólicos, como a produção de diferentes enzimas e tal, e ter que resetar seu metabolismo constantemente é muito custoso. Como resultado, o desempenho dos espécimes recebendo tal dieta diminuiu e os animais passam a evitar um dos tipos de alimento porque comer menos é menos perigoso que misturar comida.

Uma Obama anthropophila “grávida” prestes a pôr uma cápsula de ovos. Foto minha, Piter K. Boll.*

Outro aspecto interessante é que planárias recebendo uma dieta mista, mesmo morrendo mais cedo, punham cápsulas de ovos mais pesadas que os grupos de dieta única. Cápsulas de ovos mais pesadas geralmente significam mais embriões ou mais nutriente para os embriões, aumentando o sucesso reprodutivo. Mas como um animal morrendo pode ser melhor se reproduzindo que um animal saudável?

Bem, isso pode estar relacionado à hipótese do investimento terminal. Acredita-se, e é provado em alguns grupos, que um organismo pode aumentar seu investimento em reprodução quando eventos reprodutivos futuros não são esperados, isto é, quando um organismo “se dá conta” de que está prestes a morrer, ele põe todo seu esforço em se reproduzir para garantir que seus genes passem para gerações futuras.

Não podemos ter certeza de nada ainda. Mais estudos são necessários para entender melhor a relação de planárias terrestres com sua comida. O que podemos assegurar é que, assim como Obama nungara, Obama anthropophila pode acabar na Europa ou outro lugar logo porque sua dieta relativamente ampla e sua proximidade com humanos a fazem uma potencial nova espécie a ser acidentalmente espalhada pelo mundo.

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Referência:

Boll PK, Marques D, & Leal-Zanchet AM (2020) Mind the food: Survival, growth and fecundity of a Neotropical land planarian (Platyhelminthes, Geoplanidae) under different diets. Zoology 138: 125722.

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Devemos salvar ou nos livrar de parasitas?

por Piter Kehoma Boll

Parasitas são um tipo especial de organismos que vivem sobre ou dentro de outras formas de vida, lentamente se alimentando delas, mas geralmente não as matando, apenas reduzindo sua condição física em algum grau. Essa é uma forma muito mais discreta de sobreviver do que matar ou arrancar pedaços inteiros com uma mordida, como predadores (tanto carnívoros quanto herbívoros) fazem. Todavia, diferente destas criaturas, parasitas costumam ser visto como desagradáveis e nojentos. Ainda assim, o parasitismo é a forma mais comum de conseguir alimento na natureza.

Quando apresentei o carrapato-de-rinoceronte numa Sexta Selvagem recente, mencionei o dilema causado por isso. Como o carrapato-de-rinoceronte é um parasita de rinocerontes, e rinocerontes estão ameaçados de extinção, uma prática comum para melhorar o sucesso reprodutivo destes mamíferos é remover seus carrapatos, mas isso pode acabar levando o carrapato-de-rinoceronte à extinção também.

Isso de fato já aconteceu com outros parasitas, como o piolho Coleocephalum californici, que era um parasita exclusivo do condor-da-Califórnia, Gymnogyps californianus. Para salvar o condor, uma prática comum entre veterinários trabalhando com os conservacionistas era tirar os piolhos das aves e, como resultado, este piolho está agora extinto. O prejuízo que o piolho causava ao condor era tão pouco, no entanto, que sua extinção não era nem um pouco necessária, sendo nada mais que um caso de negligência e falta de empatia com uma espécie pequena e não-carismática.

O piolho-do-condor-da-Califórnia Coleocephalum californici se tornou extinto durante uma campanha mal manejada para salvar o condor-da-Califórnia Gymnogyps californianus. Imagem extraída de https://www.hcn.org/blogs/goat/the-power-and-plight-of-the-parasite

O piolho Rallicola (Aptericola) pilgrimi também desapareceu para sempre durante as campanhas de conservação para salvar seu hospedeiro, o kiwi-manchado-pequeno, Apteryx owenii, em outro trabalho falho.

Os esforços para salvar o kiwi-manchado-pequeno, Apteryx owenii, da extinção levou à extinção de seu piolho. Foto de Judi Lapsley Miller.*
A agora extinta Rallicola (Aptericola) pilgrimi. Créditos ao Museu da Nova Zelândia.**

Outro grupo de parasitas que está enfrentando a extinção são as pulgas. A espécie Xenopsylla nesiotes era endêmica da Ilha do Natal junto com seu hospedeiro, o rato-da-Ilha-do-Natal, Rattus macleari. A introdução do rato-preto, Rattus rattus, na ilha levou a um rápido declínio na população do rato-da-Ilha-do-Natal, que se tornou extinto no começo do século XX e, é claro, a pulga se extinguiu com ele. A pulga Acanthopsylla saphes provavelmente se tornou extinta também. Ela era parasita do quol-oriental, Dasyurus viverrinus, na Austrália continental. O quol-oriental hoje só é encontrado na Tasmânia, pois a população da Austrália continental se tornou extinta em meados do século XX. Contudo a pulga nunca foi encontrada em populações da Tasmânia, então provavelmente ela desapareceu na Austrália continental junto com a população local do hospedeiro.

A pulga-do-bobo-pequeno Ceratophyllus (Emmareus) fionnus. Foto de Olha Schedrina, Natural History Museum.*

Mas as coisas vêm mudando ultimamente e felizmente a visão sobre os parasitas está melhorando. Uma avaliação recente foi feita numa população de outra pulga, a pulga-do-bobo-pequeno, Ceratophyllus (Emmareus) fionnus. Esta pulga tem como hospedeiro específico o bobo-pequeno, Puffinus puffinus. Apesar de o bobo-pequeno estar longe de ser uma espécie ameaçada e ter muitas colônias ao longo da costa do Atlântico Norte, a pulga é endêmica da Ilha de Rùm, uma pequena ilha ao oeste da costa da Escócia. Devido à pequena população do hospedeiro nesta ilha, a pulga foi avaliada como vulnerável. Se a população do bobo-pequeno na ilha estivesse estável, as coisas estariam bem, mas, como você já deve imaginar, as coisas não estão bem. Assim como aconteceu na Ilha do Natal, o rato-preto também foi introduzido na Ilha de Rùm e se tornou um predador do bobo-pequeno, atacando seus ninhos.

O bobo-pequeno, Puffinus puffinus, é o único hospedeiro da pulga-do-bobo-pequeno. Foto de Martin Reith.**

Algumas ideias foram sugeridas para proteger a pulga da extinção. Uma delas é erradicar o rato-preto da ilha ou ao menos manejar sua população perto da colônia de bobos-pequenos. Outra proposta é translocar algumas pulgas para outra ilha para criar populações adicionais em outras colônias de bobos-pequenos.

Mas por que se dar ao trabalho de proteger parasitas? Bem, há razões o bastante. Primeiro, eles compreendem uma enorme parcela da biodiversidade do planeta e sua perda teria forte impacto sobre qualquer ecossistema. Segundo, eles são uma parte essencial da história evolutiva de seus hospedeiros e são, portanto, promotores de diversidade por seleção natural. Remover os parasitas de um hospedeiro eventualmente reduziria sua variabilidade genética e o deixaria mais vulnerável a novos parasitas. Devido à sua coevolução com o hospedeiro, parasitas também são uma fonte valiosa de informação sobre a ecologia e a história evolutiva do hospedeiro, ajudando-nos a conhecer a dinâmica de suas populações. Podemos até encontrar maneiras de lidar com nossos próprios parasitas ao estudar os parasitas de outras espécies, e parasitas são certamente algo que os humanos conseguiram coletar em grande número enquanto se espalhavam pelo globo.

Os parasitas podem ser incômodos, mas são necessários. Pode parecer que eles enfraquecem o hospedeiro a princípio, mas, a longo prazo, o que não te mata te fortalece.

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Referências:

Kirst ML (2012) The power and plight of the parasite. High Country News. Available at < https://www.hcn.org/blogs/goat/the-power-and-plight-of-the-parasite >. Access on 3 November 2019.

Kwak ML (2018) Australia’s vanishing fleas (Insecta: Siphonaptera): a case study in methods for the assessment and conservation of threatened flea species. Journal of Insect Conservation 22(3–4): 545–550. doi: 10.1007/s10841-018-0083-7

Kwak ML, Heath ACG, Palma RL (2019) Saving the Manx Shearwater Flea Ceratophyllus (Emmareus) fionnus (Insecta: Siphonaptera): The Road to Developing a Recovery Plan for a Threatened Ectoparasite. Acta Parasitologica. doi: 10.2478/s11686-019-00119-8

Rózsa L, Vas Z (2015) Co-extinct and critically co-endangered species of parasitic lice, and conservation-induced extinction: should lice be reintroduced to their hosts? Oryx 49(1): 107–110. doi: 10.1017/S0030605313000628

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Invasões alienígenas: a resistência está nos arroios

por Piter Kehoma Boll

Atividades humanas têm introduzido, seja deliberadamente ou acidentalmente, várias espécies em áreas fora de sua região nativa. Muitas destas espécies, quando alcançam um novo ecossistema, podem ter efeitos devastadores nas comunidades locais.

Uma prática comum é a introdução de peixes exóticos para produção de alimento ou para recreação. Apesar de o impacto de espécies de peixes exóticos poder ser severo, há vários fatores que modulam esta severidade. Contudo uma situação na qual os resultados podem ser catastróficos é quando peixes são introduzidos em corpos d’água que originalmente não possuíam peixes.

Arroios e lagos de montanha geralmente não possuem peixes por causa de barreiras físicas, especialmente quedas d’água, pois elas previnem peixes de se moverem rio acima. Mas peixes foram introduzidos em muitos lagos de montanha para fornecer um estoque local de alimento ou para pesca esportiva.

Um local que recebeu tal praga foi o Parque Nacional Gran Paradiso nos Alpes Italianos Ocidentais. Durante os anos 1960, a truta-das-fontes, Salvelinus fontinalis, um peixe que é nativo da América do Norte, foi introduzida em vários dos lagos de altitude do parque. Mais tarde, quando a área se tornou protegida, a pesca foi proibida.

Salvelinus fontinalis, a truta-das-fontes. Foto de Alex Wild.

De 2013 a 2017, um programa de erradicação de peixes foi conduzido em quatro lagos do parque: Djouan, Dres, Leynir e Nero. Os peixes foram capturados usando redes de emalhar e pesca elétrica. Como as trutas haviam colonizado os arroios que são conectados aos lagos, tiveram de ser removidas de lá também.

As comunidades de organismos vivendo em lagos e arroios foram monitoras para avaliar sua recuperação após a remoção dos peixes. Os lagos mostraram uma resiliência notável, chegando a uma estrutura de comunidade similar à de lagos onde peixes nunca foram introduzidos. Os arroios, por outro lado, não apresentaram grande diferença antes e depois da remoção de peixes. A razão, no entanto, não é porque os arroios possuem pouca resiliência. Ao contrário, os arroios mostraram grande resistência à invasão dos peixes. As trutas não pareceram afetar tanto as comunidades de macroinvertebrados de arroios. Mas por quê?

Lago Dres no Parque Nacional Gran Paradiso. Imagem extraída do website do parque (http://www.pngp.it).

Uma hipótese era de que macroinvertebrados constantemente colonizam os arroios por dispersão passiva, vindo de águas rio acima. Contudo isso não é aplicável a arroios que drenam os lagos, já que as comunidades de arroios e lagos são bem diferentes. Baixa predação por parte das trutas não é uma opção tampouco, porque se demonstrou que trutas de arroio na verdade comem mais que as de lago. Talvez invertebrados de arroio se reproduzam mais rapidamente que os de lagos? Não! Estudos demonstraram que isso é similar em ambos os ambientes.

A razão por que invertebrados de arroio são menos afetados pela introdução de peixes ainda é um mistério. Uma explicação possível é que arroios apresentam mais micro-habitats que não são explorados pelas trutas, fornecendo refúgio para os invertebrados. Precisamos de mais estudos para entender o que está acontecendo.

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Referências:

Tiberti R, Bogliani G, Brighenti S, Iacobuzio R, Liautaud K, Rolla M, Hardenberg A, Bassano B. (2019) Recovery of high mountain Alpine lakes after the eradication of introduced brook trout Salvelinus fontinalis using non-chemical methods. Biological Invasions 21: 875–894. doi: 10.1007/s10530-018-1867-0

Tiberti R, Brighenti S (2019) Do alpine macroinvertebrates recover differently in lakes and rivers after alien fish eradication? Knowledge & Management of Aquatic Ecosystems 420: 37. doi: 10.1051/kmae/2019029

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Indo fundo com as tripas cheias de micróbios: uma lição de peixes chineses

por Piter Kehoma Boll

Ao redor do mundo todo, muitas espécies animais se adaptaram a viver em ambientes de caverna, locais que são naturalmente desprovidos de luz, parcial ou inteiramente, e são, portanto, habitats pobres em nutrientes. A falta de luz faz com que seja impossível para plantas e outros organismos fotossintetizantes sobreviverem e, como resultado, há pouco alimento disponível para criaturas não fotossintetizantes. Estas criaturas dependem quase inteiramente de alimento que entra na caverna da superfície pela água ou por animais que se movem entre a superfície e as profundezas.

Devido à falta de luz nas cavernas, animais adaptados a este ambiente são geralmente desprovidos de olhos, pois ver não é possível de qualquer jeito, e brancos, porque não há necessidade de pigmentação na pele para se proteger da radiação ou para informar qualquer coisa visualmente. Por outro lado, sentidos químicos como olfato e paladar são frequentemente muito bem desenvolvidos.

Todas estas limitações tornam os ambientes de caverna relativamente pobres em espécies quando comparados a ambientes de superfície. Ou ao menos isso é o que parece à primeira vista. Há, é claro, muito menos espécies macroscópicas, como animais multicelulares, mas estes animais são eles mesmos um ambiente que pode abrigar uma vasta e desconhecida diversidade de microrganismos dentro deles.

Como vocês devem saber, a maioria dos, se não todos os, animais possui relações mutualísticas com microrganismos, especialmente bactérias, vivendo em seus intestinos. Esses microrganismos são essenciais para muitos processos digestivos, e muitos nutrientes que animais conseguem pela comida só podem ser obtidos com o auxílio desses amigos microscópicos. Os tipos de microrganismos no intestino de um animal estão diretamente relacionados com a dieta do animal. Por exemplo, herbívoros geralmente possuem uma alta diversidade de microrganismos que são capazes de degradar carboidratos, especialmente os complexos como a celulose.

Um estudo recente, conduzido na China com peixes do gênero Sinocyclocheilus, comparou a diversidade microbiana intestinal de diferentes espécies, incluindo algumas que vivem na superfície e algumas que são adaptadas a cavernas. Todas as espécie de Sinocyclocheilus parecem ser primariamente onívoras, mas espécies diferentes podem ter preferência por um tipo particular de comida, sendo mais carnívoras ou mais herbívoras.

O estudo descobriu que espécies de Sinocyclocheilus de caverna possuem uma diversidade microbiana muito maior que espécies de superfície. Mas como isso pode ser possível se o número de recursos é limitado nas cavernas em comparação com a superfície? Bem, essa parece ser exatamente a razão.

Sinocyclocheilus microphthalmus, uma das espécies de caverna usada neste estudo. Foto extraída de Cool Goby Blog.

Como eu mencionei, espécie de Sinocyclocheilus são onívoras. Na superfície, elas possuem comida à vontade disponível e podem se dar ao luxo de escolher um tipo de comida preferido. Como resultado, sua microbiota intestinal é composta principalmente de espécies que auxiliam na digestão de um tipo específico de comida. Em cavernas, por outro lado, a comida é tão escassa que não se pode escolher e é preciso comer o que quer que esteja disponível. Isso inclui se alimentar de pequenas porções de diferentes tipos de alimento, incluindo outros animais que vivem na caverna e muitos tipos diferentes de resíduos animais e vegetais que chegam à caverna pela água. Assim, uma comunidade muito mais diversa de microrganismos intestinais é necessária para que a digestão seja eficiente.

Veja como o número de gêneros diferentes de bactérias é muito maior no grupo de caverna (direita) que em dois grupos da superfície (esquerda e centro). Imagem extraída de Chen et al. (2019)

Mais do que uma diversidade aumentada por si só, a comunidade de peixes de caverna também mostrou um grande número de bactérias que é capaz de neutralizar compostos tóxicos de vários tipos. A razão para isso ainda não é clara, mas há duas explicações possíveis que não são necessariamente mutualmente exclusivas. A primeira afirma que a água em cavernas é renovada numa taxa muito menor que águas superficiais, o que promove o acúmulo de todo tipo de substâncias, incluindo resíduos metabólicos das próprias espécies da caverna que podem ser tóxicos. A segunda hipótese é de maior preocupação e sugere que este aumento do número de bactérias capazes de degradar substâncias nocivas é um fenômeno recente causado pelo aumento de poluição da água por atividades humanas, o que está promovendo uma pressão seletiva em organismos de caverna.

A microbiota intestinal diversa de peixes de caverna é, portanto, uma estratégia desesperada mas inteligente de sobreviver num ambiente tão hostil. A natureza sempre encontra um meio.

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Referência:

Chen H, Li C, Liu T, Chen S, Xiao H (2019) A Metagenomic Study of Intestinal Microbial Diversity in Relation to Feeding Habits of Surface and Cave-Dwelling Sinocyclocheilus Species. Microbial Ecology. doi: 10.1007/s00248-019-01409-4

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A comunidade de planárias terrestres da FLONA-SFP e como elas conseguem conviver

por Piter Kehoma Boll

(Em primeiro lugar, eu gostaria que fosse o Bolsonaro, aquele pedaço de câncer em forma de diarreia, que estivesse morrendo queimado no lugar da Floresta Amazônica.)

(Agora vamos à postagem em si:)

A Floresta Nacional de São Francisco de Paula (FLONA-SFP) é uma unidade de conservação para uso sustentável no sul do Brasil. Ela era originalmente coberta de floresta de araucária, mas atualmente é composta de um mosaico de floresta nativa e plantações de árvores dos gêneros Araucaria, Pinus e Eucalyptus. Esta área de proteção é uma das principais áreas de estudo do Instituto de Pesquisas de Planárias da Unisinos, onde conduzi minhas pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado.

Após estudarmos a comunidade de planárias terrestres da FLONA-SFP por muitos anos, concluímos que ela inclui um número consideravelmente alto de espécies. Dê uma olhada em algumas delas e como são legais:

Obama ladislavii, a planária-folha-de-Ladislau. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Obama anthropophila, a planária-folha-urbana-marrom. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Obama josefi, a planária-foolha-de-Josef. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Obama ficki, a planária-folha-de-Fick. Foto de Piter Kehoma Boll.
Obama maculipunctata, a planária-folha-manchada-e-pintada. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Cratera ochra, a planária-cratera-ocre. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Luteostriata arturi, a planária-amarela-listrada-de-Artur. Créditos ao Instituto de Pesquisas de Planárias, Unisinos.**
Luteostriata ceciliae, a planária-amarela-listrada-de-Cecília. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Luteostriata pseudoceciliae, a falsa-planária-amarela-listrada-de-Cecília. Créditos ao Instituto de Pesquisas de Planárias, Unisinos.**
Luteostriata ernesti, a planária-amarela-listrada-de-Ernst. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Luteostriata graffi, a planária-amarela-listrada-de-Graff. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Supramontana irritata, a planária-amarelada-irritada. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Pasipha backesi, a planária-brilhante-de-Backes. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Pasipha brevilineata, a planária-brilhante-de-linha-curta. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Matuxia tymbyra, a planária-tupi-enterrada. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Choeradoplana iheringi, a planária-de-pescoço-inchado-de-Ihering. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Choeradoplana benyai, a planária-de-pescoço-inchado-de-Benya. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Choeradoplana minima, a planária-de-pescoço-inchado-menor. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Cephaloflexa araucariana, a planária-de-cabeça-virada-das-araucárias. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Paraba franciscana, a planária-colorida-franciscana. Foto de Piter Kehoma Boll.*
Paraba rubidolineata, a planária-colorida-de-linha-vermelha. Créditos ao Instituto de Pesquisas de Planárias, Unisinos.**
Imbira guaiana, a planária-tira-de-casca-caingangue. Foto de Piter Kehoma Boll.*

As planárias terrestres vivem na serapilheira do solo de florestas e predam outros invertebrados. As 22 espécies mostradas acima são aquelas encontradas na FLONA-SFP que estão formalmente descritas, mas há ainda algumas esperando uma descrição. Poderíamos dizer que há pelo menos 30 espécies diferentes coexistindo nessa unidade de conservação.

Como todas elas conseguem persistir juntas? Não existe nenhum tipo de competição por alimento? Pensando nisso, eu conduzi minha pesquisa de mestrado investigando a dieta dessas e de outras planárias terrestres. Meus resultados sugerem que, apesar de algumas espécies compartilharem muitos itens alimentares, a maioria possui um alimento preferido ou um item alimentar exclusivo que poderia ser considerado o que Reynoldson e Pierce (1979) chamaram de “refúgio alimentar”.

Aqui está o que conhecemos sobre as espécies da FLONA-SFP até agora:

  • Obama ficki se alimenta de lesmas e caracóis e parece preferir lesmas grandes;
  • Obama ladislavii se alimenta de lesmas e caracóis e parece preferir caracóis;
  • Obama maculipunctata se alimenta de lesmas e caracóis com preferência desconhecida;
  • Obama anthropophila se alimenta de lesmas, caracóis e outras planárias terrestres, especialmente do gênero Luteostriata, e prefere as últimas;
  • Obama josefi aparentemente se alimenta apenas de outras planárias terrestres;
  • Todas as espécies de Luteostriata se alimentam exclusivamente de tatuzinhos-de-jardim;
  • Espécies de Choeradoplana aparentemente se alimentam de tatuzinhos-de-jardim e de opiliões;
  • Cephaloflexa araucariana aparentemente se alimenta de opiliões;
Obama ladislavii capturando uma lesma. Foto de Piter Kehoma Boll.*

A dieta das outras espécies é ainda completamente desconhecida, mas, baseado em outras espécies dos mesmos gêneros, é provável que espécies de Pasipha se alimentem de milípedes, espécies de Paraba se alimentem de lesmas e planárias, e Imbira guaiana se alimente de minhocas.

Luteostriata ernesti perto de alguns tatuzinhos-de-jardim suculentos. Foto de Piter Kehoma Boll.*

Há um grande número de diferentes grupos de invertebrados que compartilham a serapilheira com as planárias terrestres. Apesar da anatomia aparentemente simples destes platelmintos, eles são capazes de se adaptarem para se alimentarem de diferentes tipos de presas e possuem adaptações musculares e faríngeas para isso. Uma tentativa de relacionar adaptações anatômicas à dieta de planárias terrestres foi parte da minha pesquisa de doutorado. Assim que for publicada, farei uma postagem a respeito. Há alguns resultados interessantes!

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Referências:

Boll PK & Leal-Zanchet AM 2015. Predation on invasive land gastropods by a Neotropical land planarian. J. Nat. Hist. 49: 983–994.

Boll PK & Leal-Zanchet AM 2016. Preference for different prey allows the coexistence of several land planarians in areas of the Atlantic Forest. Zoology 119: 162–168.

Leal-Zanchet AM & Carbayo F 2000. Fauna de Planárias Terrestres (Platyhelminthes, Tricladida, Terricola) da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, RS, Brasil: uma análise preliminar. Acta Biologica Leopoldensia 22: 19–25.

Oliveira SM, Boll PK, Baptista V dos A, & Leal-Zanchet AM 2014. Effects of pine invasion on land planarian communities in an area covered by Araucaria moist forest. Zool. Stud. 53: 19.

Reynoldson TB & Piearce B 1979. Predation on snails by three species of triclad and its bearing on the distribution of Planaria torva in Britain. Journal of Zoology 189: 459–484.

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*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição e Compartilhamento Igual 4.0 Internacional.

**Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição Não Comercial e Compartilhamento Igual 4.0 Internacional.

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Em vez de produtos químicos tóxicos, use plantas ajudantes para se livrar de pragas agrícolas

por Piter Kehoma Boll

Encontrar maneiras eficientes de lidar com pragas agrícolas em plantações é um trabalho desafiador. Atualmente, como todos sabemos, a principal estratégia para o controle de tais pragas é o uso de pesticidas químicos. Contudo, esta abordagem apenas serve aos interesses daqueles buscando lucro e não o bem-estar, visto que todos sabemos que tais pesticidas aumentam o risco de diversos problemas de saúde naqueles que consomem os produtos. Mais que isso, pesticidas químicos não apenas matam a praga-alvo, mas muitas outras formas de vida, causando um efeito devastador nos ecossistemas.

A lagarta-listrada-do-repolho (Evergesis rimosalis) é uma praga comum em plantas do gênero Brassica (couve, repolho, mostarda) no leste dos Estados Unidos. Foto do usuário margardimaria do iNaturalist.*

Felizmente, tem havido um interesse crescente em encontrar maneiras alternativas e mais saudáveis de lidar com o problema. Uma maneira é a produção de organismos geneticamente modificados (GMOs) que são naturalmente resistentes às pragas. Há, no entanto, dois problemas principais com esta abordagem. A primeira é que a população em geral tem um medo irracional de GMOs, aparentemente acreditando que eles são mais perigosos que os pesticidas químicos, o que é completamente absurdo. O segundo problema com GMOs é que a tecnologia para criá-los é dominada pelas mesmas companhias que produzem a maioria dos pesticidas e, como todas as grandes companhias, apenas buscam o lucro e não dão a mínima para as pessoas ou o meio ambiente.

Uma terceira estratégia é o uso de inimigos naturais das pragas para controlá-las em fazendas orgânicas. Apesar de muitos inimigos naturais serem ótimos em seu trabalho, eles também podem causar impactos negativos por interferirem nos ecossistemas do entorno. A maioria das pragas de plantações não são nativas das áreas onde são pragas, isto é, elas são espécies invasoras e, de forma a controlá-las eficientemente, um predador de sua área nativa precisa ser introduzido também, e este predador pode acabar se tornando uma ameaça para outras espécie que escolhe como alimento.

Coleomegilla maculata é uma joaninha predadora comum no leste dos Estados Unidos. Elas são ótimas controlando pragas agrícolas localmente, mas não devem ser deliberadamente introduzidas em outros lugares. Foto de Riley Walsh.*

Felizmente, algumas boas estratégias foram recentemente desenolvidas. Uma delas inclui o uso de plantas adicionais nos campos que mudam a maneira como pragas se comportam sem serem uma ameaça para áreas do entorno. Estas plantas adicionais compreendem dois tipos: cultivares-armadilhas e plantas-insetários.

O trigo-sarraceno Fagopyrum esculentum vem sendo usado como planta-insetário. Foto do usuário jimkarlstrom do iNaturalist.*

Um cultivar-armadilha, como o nome sugere, é um cultivar adicional que não se intenciona explorar comercialmente, mas que serve como uma armadilha para as pragas. Em vez de atacarem o cultivar principal (o cultivar de interesse), as pragas são atraídas pelo cultivar-armadilha, reduzindo em densidade no cultivar de interesse. Este sistema é mais eficiente se o cultivar-armadilha for similar ao cultivar de interesse, tal como outra planta do mesmo gênero ou outra variedade da mesma espécie, porque ele precisa ser tão atrativo para a praga quanto o cultivar de interesse, ou talvez até mais atrativo.

Plantas-insetários, por outro lado, têm a intenção de atrair outros insetos para a plantação, especialmente insetos predadores que predam a praga agrícola. Plantas-insetários devem produzir flores em abundância, assim atraindo várias espécies de insetos, o que aumenta o interesse de predadores na área. Contudo, quando usadas sozinhas, as plantas-insetários só fornecem predadores para controlar pragas em plantas cultivadas que estejam perto das plantas-insetários e, como estas costumam ser plantadas ao redor da plantação, não protegem as plantas perto do centro da plantação.

Em um estudo recente, Shrestha et al. (veja referências) decidiram combinar cultivares-armadilhas e plantas-insetários junto com cultivares de interesse em uma estratégia que chamaram de “tríade botânica”. O cultivar de interesse foi repolho orgânico (Brassica oleracea var. capitata) plantado no leste dos Estados Unidos; os cultivares-armadilhas foram outros três cultivares do gênero Brassica: mostarda-marrom (Brassica juncea) e dois tipos de couve (Brassica oleracea var. acephala e Brassica oleracea var. italica); e as plantas-insetários foram o trigo-sarraceno (Fagopyrum esculentum) e a flor-de-mel (Lobularia maritima).

Couve (Brassica oleracea var. acephala). Foto de David Andreas Tønnessen.*

Como resultado, o número de herbívoros (isto é, pragas agrícolas) foi maior em cultivares-armadilhas do que no cultivar de interesse. Os cultivares-armadilhas foram, portanto, mais atrativos que o cultivar de interesse para as pragas. A presença de plantas-insetários aumentou o número de insetos predadores e parasitoides, como joaninhas e vespas parasitoides, nos cultivares-armadilhas em comparação com tratamentos sem plantas-insetários. O número de pragas parasitadas também aumentou na presença de plantas-insetários.

Organização da lavoura

No geral, o “trabalho em equipe” de cultivares-armadilhas e plantas-insetários reduziu a influência de pragas agrícolas em cultivares de interesse. Os cultivares-armadilhas atraíram as pragas para uma área próxima das plantas-insetários, permitindo que os predadores as alcançassem.

Maneiras eficientes de cultivar organicamente são possíveis. Só precisamos focar em ecossistemas saudáveis e não no dinheiro. Se trabalharmos juntos, podemos derrotar as “Seis grandes” corporações que dominam a produção de alimento no mundo. Elas são as verdadeiras pragas.

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Referência:

Shrestha B, Finke DL, Piñero JC (2019) The ‘Botanical Triad’: The Presence of Insectary Plants Enhances Natural Enemy Abundance on Trap Crop Plants in an Organic Cabbage Agro-Ecosystem. Insects 10(6): 181. doi: 10.3390/insects10060181

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*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição Não Comercial 4.0 Internacional

**Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição 4.0 Internacional.

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