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Sexta Selvagem: Musgo-Impossível

Por muito tempo, todas as plantas não-vasculares foram classificadas em só uma divisão, Bryophyta, dividida em três grupos: hepáticas, musgos e antóceros. Atualmente, no entanto, elas são tratadas como três divisões separadas: Marchantiophyta (hepáticas), Bryophyta (musgos) e Anthocerophyta (antóceros). Os três grupos são anatomicamente distintos e é difícil confundir um com o outro, especialmente os musgos, que possuiem um jeitão característico de “miniárvore”, mas às vezes não é tão fácil ver a diferença.

Este é o caso do camarada de hoje, um musgo bem peculiar chamado ナンジャモンジャゴケ (musgo-impossível) em japonês, e por uma boa razão. Seu nome científico é Takakia lepidozioides e é uma das duas espécies do gênero Takakia.

Quando espécimes de Takakia foram descobertas no século XIX, eles foram originalmente classificados como hepáticas e isso continuou assim por muitas décadas porque estruturas reprodutivas não eram conhecidas. Quando gametófitos femininos foram encontrados com arquegônios (a estrutura reprodutiva feminina) pela primeira vez, ficou claro que eles são na verdade musgos e foram reclassificados como tais.

Uma olhada de perto nos talos do musgo-impossível. Foto de Stu Crawford.*

O musgo-impossível cresce como uma camada de rizomas delicados e rastejantes dos quais crescem pequenos talos verdes e frágeis. Estes talos possuem minúsculas folhas que têm só algumas células de largura e que se ramificam na ponta como uma língua de cobra, uma característica não vista em musgos de outros gêneros. Crescendo em áreas de floresta bem sombreadas, o musgo-impossível possui uma distribuição bem disjunta, com populações isoladas encontradas na Ásia e na América do Norte. Ele é considerado um típico exemplo de uma espécie relicta, a qual provavelmente possuía uma distribuição original muito grande mas se tornou quase extinta durante uma era glacial, com apenas essas pequenas populações isoladas permanecendo.

O musgo-impossível, de fato, sofreu mais que a perda da maior parte de sua população neste evento. Todas as plantas masculinas parecem ter sido extintas também. Como resultado, as populações sobreviventes consistem apenas de fêmeas que são forçadas a se reproduzir assexuadamente por brotamento dos rizomas ou por pequenos fragmentos dos talos que podem acabar formando plantas inteiras novas.

As plantas femininas continuam produzindo estruturas sexuais no entanto, como se não tivessem perdido as esperanças e ainda acreditassem que possa haver alguns machos mundo afora. Quem sabe? Talvez eventualmente encontremos alguns em outra população isolada escondida em algum lugar remoto do nosso planeta.

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Referências:

Akiyama H (1999) Genetic variation of the asexually reproducing moss, Takakia lepidozioides. Journal of Bryology21(3), 177-182.

Wikipedia. Takakia. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Takakia >. Acesso em 5 de novembro de 2020.

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Sexta Selvagem: Dragoeiro

por Piter Kehoma Boll

Quando a sétima geração de pokémon foi lançada, ela introduziu formas regionais de pokémon anteriores, incluindo uma forma de Alola do Exeggutor, o qual mudou a tipagem de planta/psíquico do Exeggutor tradicional para planta/dragão. Isso levou muitos a se familiarizarem com o gênero Dracaena, um gênero que é bem conhecido entre botânicos e jardineiros e inclui muitas plantas ornamentais.

Exeggutor de Alola,um pokémon do tipo planta/dragão.

O nome Dracaena vem da palavra grega que significa dragoa, isto é, um dragão fêmea, e foi dado com base na espécie-tipo do gênero, Dracaena draco, ou dragoeiro, que é a nossa espécie de hoje.

Um dragoeiro em Tenerife, Ilhas Canárias. Foto do usuário Losrealejos.es do Wikimedia.*

O gênero Dracaena é proximamente relacionado ao gênero Asparagus, dos aspargos, e o dragoeiro foi inicialmente chamado de Asparagus draco por Lineu, e mais tarde renomeado Dracaena draco por ele mesmo com base no nome do gênero criado pelo naturalista italiano Domenico Agostino Vandelli. Esta espécie é nativa das ilhas africanas no Atlântico (Ilhas Canárias, Cabo Verde e Madeira).

Close numa flor. Foto do usuário Philmarin do Wikimedia.**

O dragoeiro começa a vida como um pequeno caule não ramificado como a maioria das espécie comuns de dracena que vemos em jardins. Seu crescimento é muito lento e somente após crescer verticalmente por 10 a 15 anos ele vai produzir flores pela primeira vez. As flores são brancas e parecidas com lírios e aparecem numa espiga, mais tarde se transformando em frutos avermelhados. Após esse primeiro ciclo reprodutivo, o caule se ramifica pela primeira vez a partir de uma coroa de brotos terminais e então cresce de novo por 10 a 15 anos antes de ramificar de novo. Sendo uma monocotiledônea, o dragoeiro não tem anéis de crescimento, mas sua idade pode ser estimada pelo número de pontos de ramificação do solo até a copa.

Os frutos. Foto de Forest & Kim Starr.***

A associação desta planta com dragões vem de tempos antigos. Não apenas Dracaena draco, mas algumas outras espécies de Dracaena também, produzem uma resina vermelha que é secretada quando as folhas ou o tronco são cortados. Uma resina vermelha similar é encontrada em muitas outras plantas, incluindo palmeiras e crótons, e elas eram todas coletivamente chamadas de “sangue de dragão” e usadas para muitos propósitos, como tinturas e medicamentos. Os romanos antigos coletavam sangue de dragão na ilha de Socotra, onde uma espécie proximamente relacionada, Dracaena cinnabari, a árvore-do-sangue-de-dragão, é encontrada.

Folhas mortas arrancadas mostrando a cor vermelha do sangue de dragão. Foto do usuário Sharktopus do Wikimedia.*

O dragoeiro é a árvore oficial de Tenerife, onde o maior e possivelmente mais velho espécime também é encontrado, o chamado “Drago Milenario”. O espécime tem cerca de 21 de altura e, apesar do nome, não é de fato tão velho e sua idade é mais provavelmente de cerca de 300 anos ou algo assim.

O Drago Milenario em Tenerife, o maior dragoeiro no mundo. Foto de Andrey Tenerife.**

Apesar de ser uma espécie relativamente popular que é criada como ornamental, o dragoeiro é classificado como vulnerável na lista vermelha da IUCN. Suas populações selvagens estão perto da extinção e uma razão para isso é provavelmente porque alguns de seus dispersores de sementes originais foram extintos. Apenas duas espécies de aves foram recentemente reconhecidas como dispersores eficientes. Devido ao fruto relativamente grande do dragoeiro, a maioria das aves não come o fruto inteiro e só arranca pedaços da polpa, de forma que as sementes não são levadas para novos locais.

Frutos maduros. Foto da usuária Nadiatalent do Wikimedia.*

Os guanches, o povo aborígene das ilhas canárias, costumava idolatrar um grande dragoeiro em Tenerife. Alexander von Humboldt aparentemente viu essa árvore quando vistou a ilha, mas ela foi destruída por uma tempestade que atingiu Tenerife em 1868. Os guanches foram dizimados pelos invasores espanhóis e agora sua árvore sagrada está seguindo para o mesmo caminho.

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Referências:

Bañares A et al. (1998) Dracaena dracoThe IUCN Red List of Threatened Species 1998: e.T30394A9535771. https://dx.doi.org/10.2305/IUCN.UK.1998.RLTS.T30394A9535771.en. Access on 13 August 2020.

González-Castro A, Pérez-Pérez D, Romero J, Nogales M (2019) Unraveling the Seed Dispersal System of an Insular “Ghost” Dragon Tree (Dracaena draco) in the Wild. Frontiers in Ecology and Evolution 7:39. https://doi.org/10.3389/fevo.2019.00039

Wikipedia. Dracaena draco. Available at < https://en.wikipedia.org/wiki/Dracaena_draco >. Access on 13 August 2020.

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*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição e Compartilhamento Igual 3.0 Não Adaptada.

**Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição e Compartilhamento Igual 4.0 Internacional.

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Sexta Selvagem: Broca-Verde-do-Freixo

por Piter Kehoma Boll

E hora do próximo besouro e desta vez nosso camarada é uma espécie que passou seu primeiro século após sua descoberta sem chamar muita atenção, mas então algo aconteceu. Seu nome é Agrilus planipennis e é comumente conhecido em inglês como emerald ash borer, que eu adaptei para o português como broca-verde-do-freixo.

Uma broca-verde-do-freixo adulta em Virginia, EUA. Foto de Bryan Wright.*

Nativa da Ásia Oriental, a broca-verde-do-freixo é encontrada no sudeste da Rússia, na Mongólia, no norte da China, na Coreia e no Japão. Os adultos medem cerca de 8.5 mm de comprimento e possuem uma cor verde metálica na cabeça, no pronoto e nos élìtros, e uma cor roxo-iridescente no lado dorsal do abdome que é visto quando as asas estão abertas. Eles vivem na copa de freixos (Fraxinus spp.) durante a primavera e o verão e se alimentam de suas folhas.

Após cerca de uma semana como adultos, as brocas-verdes-do-freixo começam a acasalar. As fêmeas permanecem nas árvores e os machos sobrevoam o local procurando por elas. Assim que uma fêmea é localizada, o macho se deixa cair sobre ela e eles começam a acasalar. Depois de o acasalamento ser concluído, as fêmeas vivem por mais algumas semanas e tipicamente põem cerca de 40 a 70 ovos, apesar de algumas viverem mais tempo e porem até 200 ovos.

Vista dorsal de uma broca-verde-do-freixo com as asas abertas mostrando o abdome roxo-iridescente.

Os ovos são postos entre frestas e rachaduras da casca e eclodem cerca de duas semanas depois. As larvas recém-eclodidas abrem um caminho com mordidas através da casca, atingem os tecidos internos e começam a se alimentar deles. Elas atingem até 32 mm de comprimento no quarto ínstar, mais de três vezes o comprimento do adulto, e empupam durante a primavera, emergindo como adultos logo depois. Na China, os adultos emergem das árvores em maio.

Uma larva dentro de um freixo na Pensilvânia, EUA. Créditos a Pennsylvania Department of Conservation and Natural Resource.**

Em sua área nativa, a broca-verde-do-freixo pode ser um incômodo, mas não é altamente problemática porque ocorre em baixa densidade. Contudo em 2002 a espécie foi encontrada nos Estados Unidos se alimentando de espécies locais de freixo. Visto que a broca-verde-do-freixo não possui inimigos naturais na América do Norte e que as espécies de freixo neste continente não evoluíram para serem resistentes à infecção, ela começou a se espalhar rapidamente. Em menos de duas décadas, o besouro matou milhões de freixos e é uma ameaça séria aos outros mais de oito bilhões de freixos que ainda ocorrem na América do Norte. Com a morte dos freixos, as florestas da América do Norte se tornam vulneráveis a mais espécies invasoras, as quais só vão piorar o cenário.

Dano causado pelas larvas a uma árvore no estado de Nova Iorque, EUA. Foto do usuário bkmertz do iNaturalist.*

De modo a controlar a disseminação da broca-verde-do-freixo, os freixos são tratados com pesticidas. Quatro vespas parasitoides da China que se sabe que atacam apenas a broca-verde-do-freixo também foram soltas na América do Norte para ajudar a controlar a disseminação e seu sucesso ainda está sendo avaliado. Armadilhas, como painéis roxos cobertos de cola, os quais são visualmente atrativos para os besouros, também são usadas para capturar os animais e determinar a extensão da invasão.

Mais uma vez, uma espécie bem tranquila levou a um desastre ecológico devido à influência humana e agora estamos correndo para evitar um colapso ecossistêmico ao longo de um continente inteiro.

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Referências:

Francese JA, Mastro VC, Oliver JB, Lance DR, Youssef N, Lavallee SG (2005) Evaluation of colors for trapping Agrilus planipennis (Coleoptera: Buprestidae). Journal of Entomological Science 40(1): 93-95.

Liu H, Bauer LS, Miller DL, Zhao T, Gao R, Song L, Luan Q, Jin R, Gao C (2007) Seasonal abundance of Agrilus planipennis (Coleoptera: Buprestidae) and its natural enemies Oobius agrili (Hymenoptera: Encyrtidae) and Tetrastichus planipennisi (Hymenoptera: Eulophidae) in China. Biological Control 42(1): 61-71. doi: 10.1016/j.biocontrol.2007.03.011

Wang XY, Yang ZQ, Gould JR, Zhang YN, Liu GJ, Liu ES (2010) The biology and ecology of the emerald ash borer, Agrilus planipennis, in China. Journal of Insect Science 10(1): 128. doi: 10.1673/031.010.12801

Wikipedia. Emerald ash borer. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Emerald_ash_borer >. Acesso em 9 de dezembro de 2019.

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Devemos salvar ou nos livrar de parasitas?

por Piter Kehoma Boll

Parasitas são um tipo especial de organismos que vivem sobre ou dentro de outras formas de vida, lentamente se alimentando delas, mas geralmente não as matando, apenas reduzindo sua condição física em algum grau. Essa é uma forma muito mais discreta de sobreviver do que matar ou arrancar pedaços inteiros com uma mordida, como predadores (tanto carnívoros quanto herbívoros) fazem. Todavia, diferente destas criaturas, parasitas costumam ser visto como desagradáveis e nojentos. Ainda assim, o parasitismo é a forma mais comum de conseguir alimento na natureza.

Quando apresentei o carrapato-de-rinoceronte numa Sexta Selvagem recente, mencionei o dilema causado por isso. Como o carrapato-de-rinoceronte é um parasita de rinocerontes, e rinocerontes estão ameaçados de extinção, uma prática comum para melhorar o sucesso reprodutivo destes mamíferos é remover seus carrapatos, mas isso pode acabar levando o carrapato-de-rinoceronte à extinção também.

Isso de fato já aconteceu com outros parasitas, como o piolho Coleocephalum californici, que era um parasita exclusivo do condor-da-Califórnia, Gymnogyps californianus. Para salvar o condor, uma prática comum entre veterinários trabalhando com os conservacionistas era tirar os piolhos das aves e, como resultado, este piolho está agora extinto. O prejuízo que o piolho causava ao condor era tão pouco, no entanto, que sua extinção não era nem um pouco necessária, sendo nada mais que um caso de negligência e falta de empatia com uma espécie pequena e não-carismática.

O piolho-do-condor-da-Califórnia Coleocephalum californici se tornou extinto durante uma campanha mal manejada para salvar o condor-da-Califórnia Gymnogyps californianus. Imagem extraída de https://www.hcn.org/blogs/goat/the-power-and-plight-of-the-parasite

O piolho Rallicola (Aptericola) pilgrimi também desapareceu para sempre durante as campanhas de conservação para salvar seu hospedeiro, o kiwi-manchado-pequeno, Apteryx owenii, em outro trabalho falho.

Os esforços para salvar o kiwi-manchado-pequeno, Apteryx owenii, da extinção levou à extinção de seu piolho. Foto de Judi Lapsley Miller.*
A agora extinta Rallicola (Aptericola) pilgrimi. Créditos ao Museu da Nova Zelândia.**

Outro grupo de parasitas que está enfrentando a extinção são as pulgas. A espécie Xenopsylla nesiotes era endêmica da Ilha do Natal junto com seu hospedeiro, o rato-da-Ilha-do-Natal, Rattus macleari. A introdução do rato-preto, Rattus rattus, na ilha levou a um rápido declínio na população do rato-da-Ilha-do-Natal, que se tornou extinto no começo do século XX e, é claro, a pulga se extinguiu com ele. A pulga Acanthopsylla saphes provavelmente se tornou extinta também. Ela era parasita do quol-oriental, Dasyurus viverrinus, na Austrália continental. O quol-oriental hoje só é encontrado na Tasmânia, pois a população da Austrália continental se tornou extinta em meados do século XX. Contudo a pulga nunca foi encontrada em populações da Tasmânia, então provavelmente ela desapareceu na Austrália continental junto com a população local do hospedeiro.

A pulga-do-bobo-pequeno Ceratophyllus (Emmareus) fionnus. Foto de Olha Schedrina, Natural History Museum.*

Mas as coisas vêm mudando ultimamente e felizmente a visão sobre os parasitas está melhorando. Uma avaliação recente foi feita numa população de outra pulga, a pulga-do-bobo-pequeno, Ceratophyllus (Emmareus) fionnus. Esta pulga tem como hospedeiro específico o bobo-pequeno, Puffinus puffinus. Apesar de o bobo-pequeno estar longe de ser uma espécie ameaçada e ter muitas colônias ao longo da costa do Atlântico Norte, a pulga é endêmica da Ilha de Rùm, uma pequena ilha ao oeste da costa da Escócia. Devido à pequena população do hospedeiro nesta ilha, a pulga foi avaliada como vulnerável. Se a população do bobo-pequeno na ilha estivesse estável, as coisas estariam bem, mas, como você já deve imaginar, as coisas não estão bem. Assim como aconteceu na Ilha do Natal, o rato-preto também foi introduzido na Ilha de Rùm e se tornou um predador do bobo-pequeno, atacando seus ninhos.

O bobo-pequeno, Puffinus puffinus, é o único hospedeiro da pulga-do-bobo-pequeno. Foto de Martin Reith.**

Algumas ideias foram sugeridas para proteger a pulga da extinção. Uma delas é erradicar o rato-preto da ilha ou ao menos manejar sua população perto da colônia de bobos-pequenos. Outra proposta é translocar algumas pulgas para outra ilha para criar populações adicionais em outras colônias de bobos-pequenos.

Mas por que se dar ao trabalho de proteger parasitas? Bem, há razões o bastante. Primeiro, eles compreendem uma enorme parcela da biodiversidade do planeta e sua perda teria forte impacto sobre qualquer ecossistema. Segundo, eles são uma parte essencial da história evolutiva de seus hospedeiros e são, portanto, promotores de diversidade por seleção natural. Remover os parasitas de um hospedeiro eventualmente reduziria sua variabilidade genética e o deixaria mais vulnerável a novos parasitas. Devido à sua coevolução com o hospedeiro, parasitas também são uma fonte valiosa de informação sobre a ecologia e a história evolutiva do hospedeiro, ajudando-nos a conhecer a dinâmica de suas populações. Podemos até encontrar maneiras de lidar com nossos próprios parasitas ao estudar os parasitas de outras espécies, e parasitas são certamente algo que os humanos conseguiram coletar em grande número enquanto se espalhavam pelo globo.

Os parasitas podem ser incômodos, mas são necessários. Pode parecer que eles enfraquecem o hospedeiro a princípio, mas, a longo prazo, o que não te mata te fortalece.

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Referências:

Kirst ML (2012) The power and plight of the parasite. High Country News. Available at < https://www.hcn.org/blogs/goat/the-power-and-plight-of-the-parasite >. Access on 3 November 2019.

Kwak ML (2018) Australia’s vanishing fleas (Insecta: Siphonaptera): a case study in methods for the assessment and conservation of threatened flea species. Journal of Insect Conservation 22(3–4): 545–550. doi: 10.1007/s10841-018-0083-7

Kwak ML, Heath ACG, Palma RL (2019) Saving the Manx Shearwater Flea Ceratophyllus (Emmareus) fionnus (Insecta: Siphonaptera): The Road to Developing a Recovery Plan for a Threatened Ectoparasite. Acta Parasitologica. doi: 10.2478/s11686-019-00119-8

Rózsa L, Vas Z (2015) Co-extinct and critically co-endangered species of parasitic lice, and conservation-induced extinction: should lice be reintroduced to their hosts? Oryx 49(1): 107–110. doi: 10.1017/S0030605313000628

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Salgadinhos de turistas estão matando espécies em áreas protegidas

por Piter Kehoma Boll

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Nao há nada mais ameaçador à natureza que os humanos, como todos sabemos. Muitas espécies se tornaram ameaçadas ou mesmo extintas devido à influência humana pelo mundo todo. Numa tentativa de proteger o que quer que tenha sobrado, temos criado áreas protegidas onde as espécies deveriam ser capazes de viver suas vidas sem os perigos da humanidade.

Contudo, de forma a aumentar a conscientização sobre a importância de preservar a biodiversidade, muitas áreas protegidas aceitam visitantes humanos. Apesar de isso ter algum efeito em melhorar a visão do visitante sobre a natureza e sua importância, há uma porção de efeitos colaterais indesejados. Humanos caminhando pela floresta podem causar ruído que perturba a fauna local e a compactação do solo causada por caminhar leva a mudanças no crescimento da vegetação e na drenagem do solo.

Mas outro comportamento humano que parece ter consequências sérias na conservação da biodiversidade é nossa tendência de carregar comida conosco, tal como lanches, e comê-la em qualquer lugar.. Pessoas visitando uma área protegida podem comer algo no caminho através da floresta ou parar para um piquenique. Muitas espécies amam restos de comida deixados por humanos e vão proliferar com eles.

Dois gaios-de-Steller no Parque Estadual de Big Basin Redwoods. Foto do usuário kgerner do iNaturalist.*

Uma espécie que se beneficia de comida humana é o gaio-de-Steller, Cyanocitta stelleri, um corvídeo que é comum ao longo da costa oeste da América do Norte. Como resultado, esta espécie não está nem um pouco ameaçada no momento e tende até a seguir humanos por causa do fácil acesso à comida. Na natureza, esta espécie é um onívoro generalista, alimentando-se de sementes, frutas, invertebrados, ovos e pequenos vertebrados, como roedores e filhotes de aves.

Outra ave que pode ser encontrada nas mesmas áreas que o gaio-de-Steller é a torda-miúda-marmorada Brachyramphus marmoratus, uma pequena ave marinha. Diferente da maioria das aves marinhas, a torda-miúda-marmorada não faz ninhos em rochedos e tocas perto da água, mas nos ramos de coníferas velhas. Como resultado, elas podem se mover até 80 km terra adentro para encontrar um local adequado para fazer o ninho. Diferente do gaio-de-Steller, a torda-miúda-marmorada não se beneficia de petiscos humanos. Ao contrário, eles podem ser sua ruína.

Uma torda-miúda-marmorada jovem encontrada no Parque Estadual de Big Basin Redwoods. Foto do usuário basinbird do iNaturalist.*

A torda-miúda-marmorada depende muito de florestas antigas para se reproduzir e a fêmea põe somente um ovo por ano, levando a uma baixa taxa reprodutiva. Devido à remoção de florestas antigas por humanos, a torda-miúda-marmorada perdeu muito de seu habitat original e atualmente é considerada uma espécie ameaçada.

Uma das poucas áreas que restam para esta espécie nidificar está localizada no Parque Estadual Big Basin Redwoods, na Califórnia. O parque contém muitas opções para acampamento, o que significa humanos trazendo comida o tempo todo. Isso atrai os gaios-de-Steller, que se esbaldam nas migalhas e outros restos e se reproduzem explosivamente. Quando humanos não estão presentes, esta população aumentada migra para novas áreas, às vezes seguindo humanos para as cidades, ou começa a se alimentar do que quer que esteja presente no parque, e uma das opções mais nutritivas são filhotes da torda-miúda-marmorada.

Com uma população já ameaçada, a torda-miúda-marmorada está prestes a ser extinta porque nosso desejo de caminhar pela floresta está acidentalmente aumentando a população de um de seus principais predadores. Será que algum dia vamos ter um impacto bom neste planeta?

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Referência:

West EH, Brunk K, Peery MZ (2019) When protected areas produce source populations of overabundant species. Biological Conservation 238: 108220. doi: 10.1016/j.biocon.2019.108220

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Tartarugas-verdes confundem resíduos plásticos com lulas mortas, os comem, e morrem

por Piter Kehoma Boll

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Poluição por plástico é um tópico popular recentemente e não é raro encontrar figuras de animais que morreram devido à ingestão de plástico ou outras complicações, como asfixia, causadas por pedaços de plástico. Contudo a causa da ingestão de plástico pela maioria das espécies ainda é desconhecida.

Albatroz com o estômago cheio de peças plásticas.

A tartaruga-de-couro, Dermochelys coriacea, é frequentemente mencionada como uma espécie que sofre pela ingestão de plástico devido a sua dieta ser composta primariamente por águas-vivas, com as quais sacolas plásticas flutuantes podem ser confundidas. Contudo outra tartaruga-marinha de ampla distribuição, a tartaruga-verde, Chelonia mydas, também é uma vítima comum da ingestão de plástico e quantidades tão pequenas quanto 1 g são suficientes para matar espécimes jovens bloqueando seus tratos digestivos. A dieta de tartarugas-verdes jovens e adultas é composta principalmente por ervas-marinhas e algas, de forma que a ingestão de plástico deve ser o resultado de outra causa e não sua similaridade com águas-vivas.

Uma sacola plástica em decomposição no oceano se parece com uma água-viva. Foto do usuário Seegraswise do Wikimedia.*

Apesar de serem quase estritamente herbívoras, tartarugas-verdes ingerem matéria animal quando são muito jovens e podem eventualmente consumir animais como adultas também, provavelmente como uma estratégia para sobreviver quando sua fonte de alimento principal é escassa. A ingestão de matéria animal geralmente acontece pela ingestão de animais mortos e um item animal morto comumente consumido são lulas mortas.

Uma tartaruga-verde rodeada de ervas-marinhas, sua principal fonte de alimento. Foto do usuário Danjgi do Wikimedia.**

Um estudo recente investigou a relação entre o comportamento necrofágico e o consumo de plástico na tartaruga-verde e descobriu que a quantidade de plástico ingerida por indivíduos se alimentando de lulas mortas é muito maior que a ingerida por indivíduos que não apresentam um comportamento necrofágico. No Brasil, a ingestão de plástico é responsável por cerca de 10% das mortes de tartarugas-verdes, mas este número pode chegar a 67% entre tartarugas-verdes que se alimentam de carcaças de lulas.

A ingestão de animais mortos costumava ser uma maneira eficiente de tartarugas-verdes adquirirem grandes porções de proteína. Contudo o fato de, atualmente, a maioria do material flutuante no oceano ser plástico e não animais mortos transformou uma estratégia bem-sucedida numa armadilha mortal. Se os humanos não começarem a controlar a produção de lixo plástico, haverá apenas dois resultados possíveis para as tartarugas-verdes em face a esta nova pressão seletiva: adaptação ou extinção.

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Referências:

Andrades R, Santos RA, Martins AS, Teles D, Santos RG (2019) Scavenging as a pathway for plastic ingestion by marine animals. Environmental Pollution 248: 159–165. doi: 10.1016/j.envpol.2019.02.010

Mrosovsky N, Ryan GD, James MC (2009) Leatherback turtles: the menace of plastic. Marine Pollution Bulletin 58(2): 287–289. doi: 10.1016/j.marpolbul.2008.10.018

Santos RG, Andrades R, Boldrini MA, Martins AS (2015) Debris ingestion by juvenile marine turtles: an underestimated problem. Marine Pollution Bulletin 93(1–2): 37–43. doi: 10.1016/j.marpolbul.2015.02.022

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Pense nos vermes, não só nas baleias, ou: como uma planária salvou um ecossistema

por Piter Kehoma Boll

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Devido à massiva interferência de práticas humanas em habitats naturais durante as últimas décadas, a restauração de ecossistemas se tornou uma tendência para tentar salvar o que ainda é salvável. Infelizmente, o esforço de ecologistas e outros profissionais por si só não é suficiente para alcançar isso, e uma seção maior da sociedade precisa se engajar em ajudar a atingir estes objetivos. Para conseguir isso, é comum apelar à beleza e à fofura de espécies ameaçadas, que geralmente incluem mamíferos e aves, pois estes chamam a atenção do público mais facilmente. Contudo a maioria das espécies ameaçadas são invertebrados e outros seres menos carismáticos, e eles são frequentemente ignorados mesmo pelos biólogos.

Felizmente as coisas são capazes de mudar em relação a isso. Recentemente, a restauração do primeiro ecossistema direcionada a salvar um invertebrado foi bem-sucedida, e eu estou aqui para falar sobre isso.

O invertebrado em questão é uma planária de água doce chamada Dendrocoelum italicum. Ela foi descoberta em 1936 em uma caverna no norte da Itália chamada Bus del Budrio. Dentro da caverna, há uma pequena lagoa de água doce, com cerca de 5 × 5 m ou pouco mais, causada por uma cachoeira vindo de um pequeno córrego que chega por um corredor estreito elevado. A espécie aparentemente é encontrada somente nessa lagoa e em mais nenhum outro lugar.

Não há fotos disponíveis de Dendrocoelum italicum, mas ela deve ser parecida com a espécie Dendrocoelum lacteum vista aqui, mas D. italicum não possui olhos. Foto de Eduard Solà.*

Durante aos anos 1980, um cano foi instalado para desviar a água do córrego para uma fazenda nas proximidades. A cachoeira deixou de existir e a lagoa secou permanentemente. A planária sobreviveu em um riachinho bem estreito que se formou dentro da caverna e em algumas poças isoladas resultantes de gotejamento de água. A condição crítica da população foi descoberta em 2016 por um grupo de pesquisadores da Universidade de Milão. Eles informaram os administradores da caverna sobre a situação e, juntos, o time começou a conscientizar os cidadãos, que se beneficiavam de um reservatório formado pela água desviada, sobre a situação da caverna, o que levou o fazendeiro responsável pelo desvio da água a concordar em remover a estrutura artificial.

Imagem do interior da caverna. Foto de Livio Mola, extraída de
https://www.naturamediterraneo.com/forum/topic.asp?TOPIC_ID=57050

A remoção aconteceu em 3 de dezembro de 2016 depois que todas as planárias ocorrentes no riachinho foram coletadas e armazenadas em tanques plásticos dentro da caverna. Quando a cachoeira foi restaurada, ela rapidamente começou a preencher a antiga lagoa de novo e, um dia depois, as planárias foram liberadas dentro da lagoa.

O ecossistema foi monitorado durante os dois anos seguintes até janeiro de 2018. O número de planárias variou grandemente durante o levantamento, mas não foi significativamente maior após a restauração do que era antes. Contudo, houve um aumento significativo na população de uma espécie de bivalve, Pisidium personatum, e um pequeno aumento na população de um crustáceo do gênero Niphargus. Adicionalmente, anelídeos da família Haplotaxidae, que estavam ausentes na caverna, apareceram após a restauração. Assim, fica claro que o ecossistema se beneficiou com o reaparecimento da lagoa.

Graças aos esforços desses pesquisadores, a planária Dendrocoelum italicum agora tem mais chances de evitar a extinção. Contudo, este não é um caso isolado. Há muitas espécies de planárias de caverna pelo mundo inteiro vivendo em condições similares, geralmente restritas a apenas uma pequena lagoa dentro de uma única caverna. Muitas delas ocorrem, ou ocorriam, na Itália, mas a ajuda chegou muito tarde para elas. Por exemplo, uma espécie próxima, Dendrocoelum beauchampi, foi descoberta em 1950 em uma caverna no noroeste da Itália chamada Grotta di Cavassola, mas um levantamento recente não encontrou planárias na caverna, que parece ter sofrido grande alteração devido a atividades humanas. De forma similar, a espécie Dendrocoelum benazzi foi descoberta em 1971 na Itália central em uma caverna chamada Grotta di Stiffe, mas hoje em dia, com a caverna aberta a turistas e com sua água poluída, as planárias desapareceram. É bem provável que tanto D. beauchampi quanto D. benazzi estejam extintos. A situação é a mesma para outras espécies italianas.

Fora da Itália, uma espécie descrita vivendo em um ambiente pequeno similar é a planária de caverna brasileira Girardia multidiverticulata, que é conhecida de apenas uma pequena lagoa de 10 m² dentro de uma caverna chamada Buraco do Bicho no Bioma Cerrado.

Girardia multidiverticulata é uma espécie de planária restrita a uma pequena lagoa de 10 m² dentro de uma caverna do Cerrado brasileiro. Créditos a Souza et al. (2015).**

O caso de D. italicum demonstra que é possível salvar populações endêmicas pequenas de habitats ameaçados, mas precisamos da ajuda do público. Esperamos que outros ecossistemas tenham um final feliz similar.

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Referêmcias:

Manenti R, Barzaghi B, Lana E, Stocchino GA, Manconi R, & Lunghi E 2018. The stenoendemic cave-dwelling planarians (Platyhelminthes, Tricladida) of the Italian Alps and Apennines: conservation issues. Journal for Nature Conservation.

Manenti R, Barzaghi B, Tonni G, Ficetola GF, & Melotto A 2018. Even worms matter: cave habitat restoration for a planarian species increased environmental suitability but not abundance. Oryx: 1–6.

Souza ST, Morais ALN, Cordeiro LM, & Leal-Zanchet AM 2015. The first troglobitic species of freshwater flatworm of the suborder Continenticola (Platyhelminthes) from South America. Zookeys 470: 1–16.

Vialli PM 1937. Una nuova specie di Dendrocoelum delle Grotte Bresciane. Bollettino di zoologia 8: 179–187.

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*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição e Compartilhamento Igual 3.0 Não Adaptada.

**Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição 4.0 Internacional.

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Uma rã extinta que continua viva

por Piter Kehoma Boll

Híbridos, como você deve saber, são organismos que surgem do cruzamento de dois indivíduos de espécies diferentes. Uma mula, por exemplo, é um híbrido bem conhecido entre um cavalo e um jumento. Híbridos geralmente são estéreis, apesar de nem todos, e alguns possuem uma forma bem peculiar de continuar a existir ao usar um processo chamado de hibridogênese.

Híbridos que dependem de hibridogênese funcionam da seguinte maneira: há duas espécies originais, vamos chamá-las de A e B. Quando elas copulam uma com a outra, elas produzem uma prole híbrida, AB, que tem metade dos genes de um dos pais e metade do outro. Em híbridos “normais”, tais criaturas são completamente estéreis, incapazes de produzir gametas viáveis, ou podem dar origem a novas espécies híbridas ao produzir gametas misturados. Contudo, neste tipo peculiar de híbridos, chamados cléptons, as coisas funcionam de forma diferente.

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Pelophylax kl. hispanicus, o portador de um tesouro. Foto de Andreas Thomsen.*

Quando cléptons estão produzindo gametas, eles nunca recombinam os genomas dos dois pais, mas excluem o genoma de um deles e produzem gametas que possuem o genoma do outro pai. Por exemplo, o híbrido AB produz apenas gametas A, enquanto o genoma B é excluído. Isso significa que se AB cruza com um parceiro da espécie A, a prole será formada de indivíduos A puros. Se cruza com B, a prole conterá apenas novos híbridos AB.

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A rã comestível Pelophylax kl. esculentus é um clépton formado pelo cruzamento de P. lessonae e P. ridibundus. O clépton só produz gametas de P. ridibundus, eliminando o genoma de P. lessonae durante a meiose. (Foto do usuário Darekk2 do Wikimedia).**

Essa forma de reprodução é muito comum em rãs do gênero Pelophylax, como o exemplo visto na imagem acima. Outro ponto interessante sobre cléptons é que eles geralmente são incapazes de cruzar com outro clépton. Eles dependem de uma das espécies parentais para se reproduzirem, portanto “parasitando”-as.

Um artigo recentemente publicado sobre rãs Pelophylax reporta um caso peculiar no qual uma das espécies parentais está extinta. O clépton, conhecido como Pelophylax kl. hispanicus, é o resultado de P. bergeri cruzando com uma espécie agora extinta de Pelophylax. O caso é que os gametas que P. kl. hispanicus produz são da espécie extinta, mas eles só podem fertilizar gametas de P. bergeri. Em outras palavras, poderíamos dizer que a espécie extinta ainda está viva dentro do clépton, dependendo de P. bergeri para passar para a geração seguinte.

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Pelophylax kl. hispanicus é um clépton que mantém vivo o genoma de uma espécie extinta. Imagem extraída de Dubey & Dufresnes (2017).**

Os autores sugerem que talvez pudéssemos encontrar uma maneira de trazer a espécie extinta de volta, separada de P. bergeri. Apesar de o resultado de cruzar dois P. kl. hispanicus seja uma prole estéril, eles pensam que tentativas contínuas podem acabar revelando uma eventual prole fértil. Vale a pena tentar? Talvez. Mas de qualquer forma, este é mais um aspecto fascinante da natureza, não concorda?

Quantas outras espécies extintas podem estar vivendo de forma similar, presas dentro de um híbrido?

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Referências:

Wikipedia. Hybridogenesis in water frogs. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Hybridogenesis_in_water_frogs&gt;. Acesso em 12 de outubro de 2017.

Dubey, S.; Dufresnes, C. (2017) An extinct vertebrate preserved by its living hybridogenetic descendant. Scientific Reports 7: 12768. https://dx.doi.org/10.1038/s41598-017-12942-y

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A Planaria elegans de Darwin: escondida, extinta ou mal identificada?

por Piter Kehoma Boll

Durante sua viagem épica no Beagle, Charles Darwin visitou o Rio de Janeiro, no Brasil, e coletou algumas incríveis planárias terrestres, um grupo que até então era muito pouco conhecido. Uma das espécies que ele encontrou foi Geoplana vaginuloides, a espécie-tipo do gênero Geoplana, na época chamada Planaria vaginuloides.

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Geoplana vaginuloides (Darwin, 1844), a primeira espécie de planária terrestre brasileira a ser descrita. Foto de Fernando Carbayo.*

A segunda espécie descrita por Darwin foi chamada Planaria elegans. A descrição de Darwin é como segue (traduzida do original em inglês):

“Posição dos orifícios como em P. vaginuloides. Parte anterior do corpo pouco alongada. Ocelos ausentes na extremidade anterior, e somente alguns poucos ao redor da margem do pé. Cores belas; dorso branco-neve, com duas linhas aproximadas de marrom-avermelhado; próximo dos lados com várias linhas finas paralelas do mesmo tom; pé branco, exteriormente marcado, junto com a margem do pé, com roxo-enegrecido-pálido: corpo cruzado por três anéis sem cor, nos dois posteriores se situam os orifícios. Comprimento 1 polegada; largura mais uniforme, e maior em proporção ao comprimento do corpo que na última espécie.
Hab. O mesmo que em P. vaginuloides. [Rio de Janeiro]”

E isso é tudo que sabemos desta espécie. Darwin não forneceu nenhum desenho e pesquisadores posteriores não registraram a espécie novamente, exceto quando mencionando a publicação de Darwin. Como você pode ver pela descrição, ela não é muito acurada. Ele não diz qual é a largura de cada linha ou banda, nem quantas as “várias linhas finas paralelas do mesmo tom” há. Aqui está um rápido desenho que eu fiz de como eu imagino que a criatura seria:

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Minha ideia de com o que a Planaria elegans de Darwin deve ter se parecido. Cabeça para a esquerda. Créditos para mim mesmo, Piter Kehoma Boll.**

Em 1938, Albert Riester descreveu uma planária terrestre de Barreira, um distrito na cidade de Teresópolis, Rio de Janeiro, chamando-a Geoplana barreirana. Ele a descreveu como segue (traduzido do original em alemão):

“Planária terrestre encontrada sobre uma folha depois de uma chuva; maior comprimento ca. 20 mm. Meio do dorso branco com duas finas estrias paralelas roxo-vermelhas (atropurpúreo claro). Do lado de fora do branco também limitado por vermelho pálido, então segue (de cada lado) uma faixa preta e lateralmente um padrão marmorado marrom-preto sobre um fundo marrom. A listra do meio termina na [extremidade] posterior. Cabeça manchada, marcada por faixas transversais manchadas (regenerado?). Lado inferior cinza, bordeado de marrom-preto. Extremidade anterior é arqueada para trás.”

Felizmente, Riester forneceu um desenho, o qual você pode ver abaixo:

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Geoplana barreirana desenhada por Riester (1938).

Elas se parecem um pouco, certo? Felizmente Geoplana barreirana (atualmente chamada Barreirana barreirana) foi encontrada por pesquisadores posteriores e temos fotografias! Veja um espécime abaixo:

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Um espécime de Barreirana barreirana encontrado no Parque Nacional da Tijuca, Rio de Janeiro. Foto de Fernando Carbayo.*

Riester não descreveu nenhuma marca transversal em seus espécimes, mas ele pode tê-los confundido com perda de cor em espécies preservados ou algo assim. Fora isso o espécime é muito similar ao desenho de Riester, e a anatomia interna, a qual Riester forneceu também, é compatível.

Agora vamos tentar encaixar a descrição de Darwin de Planaria elegans nessa fotografia. Fundo branco, duas listras marrom-avermelhas e várias listras finas paralelas do mesmo tom. Ele provavelmente descreveu os animais a partir de espécimes preservados, mesmo tendo-os visto vivos e os coletado. Talvez as cores já estivessem um pouco apagadas e as listras pretas, que internamente tocam duas das listras avermelhadas, possam ter sido consideradas uma única listra vermelho-roxa? Não fica claro, na sua descrição, se há branco entre as linhas marrom-avermelhadas e os lados de “roxo-enegrecido pálido”, como eu fiz no desenho, ou não, como em Barreirana barreirana, mas certamente os lados cinza-escuros de B. barreirana poderia ser o mesmo que os lados roxo-enegrecido pálidos de Planaria elegans, não acha? E B. barreirana TEM três “anéis” brancos cruzado no corpo. Você pode ver o primeiro e o segundo bem claramente no espécime acima. O terceiro não é muito bem marcado, mas você pode ver uma terceira marca branca interrompendo os lados cinzas. E as segunda e quase terceira marcadas parecem estar bem onde se esperariam estar os dois orifícios (boca e gonóporo) da planária!

E quanto ao lado ventral?  Darwin descreveu o de P. elegans como sendo branco com borda roxo-enegrecida pálida como os lados do dorso. Riester descreveu o de G. barreirana como sendo cinza bordeado de marrom-preto. Aqui está o lado ventral de Barreirana barreirana:

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Lado ventral de Barreirana barreirana do Parque Nacional da Tijuca, Rio de Janeiro. Foto de Fernando Carbayo.*

É branco, ou cinza-claro talvez, e as bordas são da mesma cor dos lados do dorso!

Eu acho que é muito, muito provável que a Planaria elegans de Darwin e a Geoplana barreirana de Riester sejam a mesma espécie. O fato de ninguém mais além de Darwin jamais ter visto um espécime de P. elegans torna isso ainda mais provável.

O que você acha?

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Veja também:

A fabulosa aventura taxonômica do gênero Geoplana.

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Referências:

Darwin, C. (1844) Brief Description of several Terrestrial Planariae, and of some remarkable Marine Species, with an Account of their Habits. Annals and Magazine of Natural History 14, 241–251.

Riester, A. (1938) Beiträge zur Geoplaniden-Fauna Brasiliens. Abhandlungen der senkenbergischen naturforschenden Gesellschaft 441, 1–88.

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Indo longe com a boca aberta a novos sabores

por Piter Kehoma Boll

Todo mundo sabe que atividades humanas levaram nosso ambiente em direção a uma situação infeliz. As formas mais populares de impacto humano incluem poluição, desmatamento e superexploração de recursos naturais, mas certamente um fator importante no remodelamento de ecossistemas é a invasão de espécies.

Enquanto os humanos se movem ao redor do mundo, eles levam muitas espécies consigo, seja intencionalmente ou não, e algumas delas se estabelecem com sucesso no novo ambiente, enquanto outras não. Mas o que faz com que algumas espécies sejam invasores bem-sucedidos enquanto outras são incapazes disso?

É evidente há algum tempo que ter um nicho amplo, isto é, uma ampla tolerância a condições ambientas e um amplo uso de recursos, é importante para ser bem-sucedido em invadir um novo habitat. A amplitude de nicho trófico, isto é, a quantidade de tipos diferentes de comida que se pode ingerir, está entre as dimensões mais importantes do nicho a influenciar a disseminação de uma espécie.

Eu mesmo estudei a amplitude de nicho trófico de seis planárias terrestres neotropicais na minha dissertação de mestrado (veja referências abaixo), e ficou claro que as espécies com o nicho mais amplo são mais prováveis de se tornarem invasoras. Na verdade aquela com o nicho mais amplo, Obama nungara, já é uma invasora na Europa, como já discuti aqui.

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Um espécime de Obama nungara do Sul do Brasil que eu usei em minha pesquisa. Foto por mim mesmo, Piter Kehoma Boll.*

Mas a O. nungara possui um nicho trófico amplo em seu local de ocorrência nativo, que inclui o sul do Brasil, e provavelmente refletiu essa amplitude na Europa. Mas uma espécie que possui um nicho trófico mais restrito em seu local nativo poderia ampliá-lo em um novo ambiente?

Um estudo recente por Courant et al. (veja referências) investigou a dieta da rã-de-unhas-africana, Xenops laevis, que é uma espécie invasora em muitas partes do mundo. Eles compararam sua dieta em seu local de origem na África do Sul com aquela em várias populações em outros países (Estados Unidos, País de Gales, Chile, Portugal e França).

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A rã-de-unhas-africana Xenopus laevis. Foto de Brian Gratwicke.**

Os resultados indicaram que X. laevis possui um nicho consideravelmente amplo tanto em seus locais nativos quanto nos não-nativos, mas a dieta em Portugal apresentou uma mudança maior comparada àquela em outras áreas, o que indica uma grande habilidade de se adaptar a novas situações. De fato, a população de Portugal vive em água corrente, enquanto em todos os outros locais esta espécie prefere água parada.

Podemos concluir que parte do sucesso da rã-de-unhas-africana ao invadir novos habitats está relacionada à sua habilidade de provar novos sabores, aumentando seu nicho trófico além daquele de suas populações originais. A situação em Portugal, incluindo um ambiente diferente e uma dieta diferente, também pode ser o resultado de uma pressão seletiva maior e talvez as chances são de que esta população irá se transformar em uma nova espécie mais cedo que as demais.

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Referências:

Boll PK & Leal-Zanchet AM (2016). Preference for different prey allows the coexistence of several land planarians in areas of the Atlantic Forest. Zoology 119: 162–168.

Courant J, Vogt S, Marques R, Measey J, Secondi J, Rebelo R, Villiers AD, Ihlow F, Busschere CD, Backeljau T, Rödder D, & Herrel A (2017). Are invasive populations characterized by a broader diet than native populations? PeerJ 5: e3250.

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