Arquivo da tag: Xenacoelomorpha

Sexta Selvagem: Waminoa-do-Pacífico

por Piter Kehoma Boll

Muito tempo atrás eu falei aqui sobre um grupo polêmico de animais bilaterais, os acelomorfos, cuja posição filogenética exata é incerta, mas as evidências estão começando a se acumular para a ideia de que eles são parte do primeiro ramo de bilatérios a se divergir dos outros, de forma que eles não são nem protostômios nem deuterostômios. Nenhum acelomorfo foi apresentado na Sexta Selvagem ainda, então é hora da estreia deles. A espécie que selecionei é uma bem interessante. Seu nome é Waminoa litus e, claro, ela não tem um nome comum, então decidi chamá-la de waminoa-do-Pacífico por ser encontrada no Pacífico, especialmente nos arredores da Austrália.

Uma espécie marinha, a waminoa-do-Pacífico tem a anatomia típica dos acelos, o subgrupo de acelomorfos a qual ela pertence. Ela não possui, por exemplo, um tubo digestivo, de forma que a boca abre diretamente nos tecidos internos. A boca se localiza no ventre, como em muitos platelmintos como as planárias. De fato, os acelomorfos foram por muito tempo considerados platelmintos até análises moleculares revelarem que eles não são.

Se você por acaso achar pequenos flocos dourados na superfície de corais ao leste da Austrália e regiões próximas, você provavelmente estará vendo várias waminoas-do-Pacífico. Foto de Anne Hoggett.*

Com um corpo achato e circular, com um leve formato de coração, a waminoa-do-Pacífico vive na superfície de corais. Elas são, de fato, tipo ectoparasitas de corais, já que se alimentam do muco que o coral produz. Mas mais que isso, a waminoa-do-Pacífico também contém dinoflagelados simbióticos (zooxantelas) vivendo diretamente dentro de seu parênquima, o tecido que preenche seu corpo. Zooxantelas são famosas como organismos simbióticos comuns vivendo dentro de corais, e elas compartilham muitos nutrientes que produzem via fotossíntese com seu hospedeiro. Os corais nos quais a waminoa-do-Pacífico vive também possuem zooxantelas. Todavia enquanto todas as zooxantelas vivendo nos corais pertencem ao gênero Symbiodinium, aquelas vivendo na waminoa-do-Pacífico pertencem a dois gêneros, Symbiodinium e Amphidinium. Isso é muito incomum, já que zooxantelas pertencentes a dois gêneros diferentes vivendo no mesmo animal é uma ocorrência muito rara. A bela cor dourada da waminoa-do-Pacífico é resultado da presença das zooxantelas.

Várias waminoas, provavelmente Waminoa litus, num coral nas Filipinas. Foto de Franca Wermuth.*

A princípio se pensou que, devido à relação próxima entre esses acelos e os corais, as linhagens de Symbiodinium vivendo dentro de ambos os organismos seriam proximamente relacionados, mas não é esse o caso. Estudos moleculares revelaram que as espécies de Symbiodinium vivendo na waminoa-do-Pacífico não são as mesmas que vivem nos corais, o que indica que ambos os organismos adquiriram as zooxantelas independentemente, isto é, a waminoa-do-Pacífico não os captura dos corais. De fato, eles são passados diretamente da mãe para a prole dentro dos ovos. A waminoa-do-Pacífico nasce com os dinoflagelados já dentro dela.

A waminoa-do-Pacífico é, portanto, uma criatura incrível não só porque pertence a uma linhagem bem divergente de animais bilaterais, mas porque é o único caso conhecido em bilatérios de simbiontes sendo transferidos diretamente da mãe para a prole. Talvez um dia as zooxantelas evoluirão para uma nova organela de um clado que evoluirá desta maravilhosa espécie.

– – –

Curta nossa página no Facebook!

Siga-me (@piterkeo) no Twitter!

Se você curte línguas e linguística, dá uma olhada no meu canal no YouTube!

Precisa de ajuda para preparar seu artigo científico? Fale com a A1 Assessoria em Produção Acadêmica. Oferecemos serviços de tradução, revisão, formatação e preparação de figuras a preços acessíveis! Nosso e-mail: a1academica@gmail.com
Se comentar que ouviu falar da A1 pelo Blog Natureza Terráquea, você ganha 10% de desconto na sua primeira tradução conosco!

– – –

Referências:

Barneah, O., Brickner, I., Hooge, M., Weis, V. M., LaJeunesse, T. C., & Benayahu, Y. (2007). Three party symbiosis: acoelomorph worms, corals and unicellular algal symbionts in Eilat (Red Sea). Marine Biology151(4), 1215-1223.

Hikosaka-Katayama, T., Koike, K., Yamashita, H., Hikosaka, A., & Koike, K. (2012). Mechanisms of maternal inheritance of dinoflagellate symbionts in the acoelomorph worm Waminoa litus. Zoological science29(9), 559-567.

Kunihiro, S., & Reimer, J. D. (2018). Phylogenetic analyses of Symbiodinium isolated from Waminoa and their anthozoan hosts in the Ryukyu Archipelago, southern Japan. Symbiosis76(3), 253-264.

– – –

*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição Não Comercial 4.0 Internacional

Deixe um comentário

Arquivado em Sexta Selvagem

De dor de cabeça a enxaqueca: Xenacoelomorpha é um clado bilateral basal ou um grupo de deuterostômios bizarros?

por Piter Kehoma Boll

Sete anos atrás eu discuti a posição filogenética de Acoelomorpha e seus parentes próximos, Xenoturbella, que juntos formam o clado Xenacoelomorpha. Sendo animais bilaterais muito simples que não possuem quase nenhuma das principais estruturas comuns à maioria dos outros bilaterais, sua posição filogenética exata é geralmente considerada basal dentro de Bilateria, mas a ideia de que são deuterostômios foi levantada depois que alguns estudos moleculares os agruparam dentro do clado Ambulacraria, que inclui equinodermos e hemicordados.

Pertencer aos deuterostômios significaria que Xenacoelomorpha sofreu uma gigantesca simplificação de sua anatomia. Lá em 2013, quando escrevi o outro artigo, isso estava causando bastante controvérsia, mas, pouco depois, novos estudos moleculares confirmaram a posição basal de Xenacoelomorpha e ficou meio que bem aceito que eles eram, de fato, o clado mais basal de Bilateria.

Uma versão simplificada da árvore da vida animal mostrando a posição incerta de Xenacoelomorpha. A posição de Placozoa e Ctenophora também não é muito clara.*

Mas uma vez problemático, sempre problemático.

Em 2019, um novo estudo que tentou antecipar os erros sistemáticos durante estudos de filogenia molecular, tal como atração de ramos longos, concluiu que a posição basal de Xenacoelomorpha é um artefato e que, quando se tenta minimizar os erros, sua posição como grupo irmão de Ambulacraria se torna clara. Contudo a árvore deles também sugere que Deuterostomia não seja monofilético, já que os cordados aparecem como grupo irmão de Protostomia e Xenacoelomorpha+Ambulacraria é o grupo mais basal, isto é, o grupo irmão do resto dos Bilateria. Contudo a ideia de Deuterostomia não ser monofilético é bem inesperada.

Como mencionei no meu último post, o principal problema em Xenacoelomorpha aparecer dentro de Deuterostomia tem a ver com sua supersimplificação. Eles não têm quase nada que um bilateral típico tem. O que os teria forçado a se tornarem tão simples?

Xenoturbella japonica, um xenacelomorfo. Créitos a Nakano et al. (2017).*

Outro estudo recente sugere que, no caso de Xenoturbella ao menos, isso pode ser o resultado de seus hábitos de se enterrar num substrato macio. Eles comparam Xenoturbella a nudibrânquios, entre os quais algumas espécies possuem estilos de vida similares. Um desses nudibrânquios, Xenocratena, foi na verdade descoberto mais ou menos na mesma época que Xenoturbella vivendo no mesmo ambiente que ela. Eles possuem uma anatomia pedomórfica (mais simplificadas, “de bebê”) em comparação a outros nudibrânquios. Contudo ela não é de forma alguma tão simples quanto a de Xenoturbella.

O nudibrânquio cavador Xenocratena suecica. Créditos a Martynov et al. (2020).*

Por outro lado, há outro gênero de nudibrânquios que é de fato supersimplificado, Pseudovermis, e ele vive enterrado em substrato macio também. Análises moleculares revelaram que Pseudovermis não é proximamente relacionado a Xenocratena, mas a Cumanotus, outro nudibrânquio que se enterra, o que sugere que esta simplificação ocorreu duas vezes entre os nudibrânquios.

Relações filogenéticas entre nudibrânqios. Veja Pseudovermis and Cumanotus a 2 horas e Xenocratena a 7 horas. Créditos a Martynov et al. (2020).*

Isso não é evidência de que Xenoturbella é um deuterostômio simplificado, mas e um bom argumento. Mas e quanto às simplificações em Acoelomorpha? Penso que se Xenoturbella não fosse proximamente relacionada a Acoelomorpha, eu estaria mais disposto a aceitar essa hipótese. Meu coração tende para a hipótese de Xenacoelomorpha basal, no entanto. Contudo, como qualquer cientista, aceitarei Xenacoelomorpha como deuterostômios se forem apresentadas evidências suficientes.

Xenoturbella é sempre o problema principal nesta equação. O sistema nervoso de Acoelomorpha, por exemplo, apesar de simplificado, tem meio que o padrão básico encontrado em todos os bilaterais e poderia ter evoluído do anel oral de um ancestral similar a um cnidário de acordo com algumas hipóteses. En Xenoturbella, no entanto, o sistema nervoso é muito mais estranho, sendo formando por uma rede difusa simples de neurônios abaixo da pele. Acho que abordar a organização do sistema nervoso em todos esses grupos é um bom tópico para outra postagem.

Se há uma coisa, na minha opinião, que faz a posição de Xenacoelomorpha dentro Deuterostomia ser algo convincente é o fato de muitas características de Deuterostomia parecerem ser mais primitivas dentro de Bilateria quando comparadas àquelas de Protostomia, de forma que a posição de Xenacoelomorpha entre os Deuterostomia é mais plausível que sua posição dentro de Protostomia (apesar de isso nem mesmo ser mais considerado uma possibilidade). Tendemos a pensar que deuterostômios são mais “derivados” simplesmente porque humanos são deuterostômios. Mas esta discussão também e assunto para outra postagem.

O que você acha? Você é time basal ou time deuterostômio?

– – –

Você também pode gostar:

Peixes-Bruxas: outra dor de cabeça filogenética

Xenoturbella: um grupo crescente de esquisitões

– – –

Curta nossa página no Facebook!

Siga-me (@piterkeo) no Twitter!

Precisa de ajuda para preparar seu artigo científico? Fale com a A1 Assessoria em Produção Acadêmica. Oferecemos serviços de tradução, revisão, formatação e preparação de figuras a preços acessíveis! Nosso e-mail: a1academica@gmail.com
Se comentar que ouviu falar da A1 pelo Blog Natureza Terráquea, você ganha 10% de desconto na sua primeira tradução conosco!

– – –

Referências:

Cannon JT, Vellutini BC, Smith J, Ronquist F, Jonfelius U, Hejnol A (2016) Xenacoelomorpha is the sister group to Nephrozoa. Nature 530: 89–93. doi: 10.1038/nature16520

Jondelius U, Raikova OI, Martinez P (2019) Xenacoelomorpha, a Key Group to Understand Bilaterian Evolution: Morphological and Molecular Perspectives. In: Pontarotti P (ed) Evolution, Origin of Life, Concepts and Methods. Cham: Springer International Publishing, . pp. 287–315. doi: 10.1007/978-3-030-30363-1_14

Martynov A, Lundin K, Picton B, Fletcher K, Malmberg K, Korshunova T (2020) Multiple paedomorphic lineages of soft-substrate burrowing invertebrates: parallels in the origin of Xenocratena and Xenoturbella. PLoS ONE 15(1): e0227173. doi: 10.1371/journal.pone.0227173

Philippe H, Poustka AJ, Chiodin M, et al. (2019) Mitigating Anticipated Effects of Systematic Errors Supports Sister-Group Relationship between Xenacoelomorpha and Ambulacraria. Current Biology 29(11):1818–1826. doi: 10.1016/j.cub.2019.04.009

– – –

*Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição 4.0 Internacional.

Deixe um comentário

Arquivado em Evolução, moluscos, Sistemática, vermes, Zoologia

Xenoturbella, um grupo crescente de esquisitões

Read it in English

por Piter Kehoma Boll

Vocês podem nunca ter ouvido falar da Xenoturbella, e eu não os culpo por isso. Apesar de ser uma característica fascinante da evolução, pouco é conhecido sobre ela e sua mágica tem sido escondida de muitos de nós.

A primeira Xenoturbella foi descrita em 1949 e chamada Xenoturbella bocki. Nesse tempo, ela era considerada um platelminto estranho, de onde seu nome, do grego xenos, estranho + turbella, de Turbellaria, os platelmintos de vida livre. Xenoturbella bocki é um animal marinho medindo até 3 cm de comprimento e se parecendo com um verme dobrado, porque seu corpo possui uma série de dobras correndo longitudinalmente que o fazem ter um formato de W em seção transversal.

Encontrada nas águas frias em torno do norte da Europa, seu corpo carece de um sistema nervoso centralizado, tendo apenas uma rede de neurônios dentro da epiderme. Também não há órgãos reprodutores ou qualquer coisa parecida com um rim ou outro órgão além de uma boca e um intestino e algumas estruturas na superfície.

Por décadas, X. bocki era a única espécie de Xenoturbella conhecida por nós. Uma segunda espécie foi descrita em 1999 como X. westbladi, mas análises moleculares revelaram que ela era a mesma espécie que X. bocki, então continuávamos tendo apenas uma espécie.  Graças a estudos moleculares, também descobrimos que Xenoturbella não é um platelminto de forma alguma, mas pertence a um grupo de animais bilaterais muito primitivos, estando proximamente relacionada a outro grupo de ex-platelmintos, os acelomorfos. Juntos, Xenoturbella e os acelomorfos (um bom nome para uma banda de rock, não é?), formam um grupo chamado Xenacoelomorpha.

xenoturbella_churro_rouse

Xenoturbella churro, “cabeça” para a direita. Foto de Greg Rouse.*

Formando seu próprio filo (ou talvez classe se for agrupada em um filo único com os acelomorfos) chamado Xenoturbellida, X. bocki recentemente descobriu que não está sozinha no mundo. Em 2016, quatro novas espécies foram descritas das águas do Oceano Pacífico próximo às costas do México e dos EUA, sendo chamadas Xenoturbella monstrosaX. churroX. profundaX. hollandorum. Considerando-se o pequeno tamanho de X. bocki, algumas dessas eram monstros, especialmente X. monstrosa, que atinge 20 cm de comprimento!

Quatro novas espécies foi um achado e tanto. O filo subitamente era cinco vezes maior que antes. Sendo alguém particularmente interessado em grupos obscuros de animais, especialmente daqueles que outrora foram membros do adorável filo Platyhelminthes, eu fiquei muito animado com essa descoberta, mas não estava esperando o que aconteceria depois disso.

xenoturbella_japonica

Foto do único espécime conhecido de Xenoturbella japonica até agora. “Cabeça” para a esquerda. Créditos a Nakano et al. (2017).*

Em dezembro de 2017, mais uma espécie foi encontrada, dessa vez do outro lado do pacífico, perto do Japão. Chamada de Xenoturbella japonica, o quinto membro do gênero Xenoturbella é muito bem-vindo. A nova espécie foi baseada em dois espécimes, um espécime adulto “fêmea” (eles são hermafroditas? Não acho que podemos ter certeza ainda…) e um espécime jovem. Outra coisa empolgante é que o jovem pode na verdade ser ainda outra espécie! Mas precisamos de mais material para confirmar.

Você pode ler o artigo descrevendo Xenoturbella japonica aqui.

Veja também: Acoelomorpha, uma dor de cabeça filogenética.

– – –

Curta nossa página no Facebook!

– – –

Referências:

Nakano, H.; MIyazawa, H.; Maeno, A.; Shiroishi, T.; Kakui, K.; Koyanagi, R.; Kanda, M.; Satoh, N.; Omori, A.; Kohtsuka, H. (2017) A new species of Xenoturbella from the western Pacific Ocean and the evolution of XenoturbellaBMC Evolutionary Biology17: 245. https://doi.org/10.1186/s12862-017-1080-2

Rouse, G.W.; Wilson N.G.; Carvajal, J.I.; Vrijenhoek, R.C. (2016) New deep-sea species of Xenoturbella and the position of Xenacoelomorpha. Nature, 530:94–7. doi:10.1038/nature16545.

– – –

*Creative Commons License
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons de Atribuição e Compartilhamento Igual 4.0 Internacional.

1 comentário

Arquivado em Sistemática, Taxonomia, vermes, Zoologia