Todos nós viemos de Asgard

por Piter Kehoma Boll

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E com “todos nós” eu quero dizer nós, os eucariontes, os organismos com células complexas com núcleo, mitocôndrias e tal.

A forma como os organismos são classificados mudou enormemente ao longo dos dois últimos séculos, mas, durante as últimas décadas, ficou claro que temos três domínios da vida, os chamados Bacteria, Archaea e Eukarya. Apesar de a relação entre estes três domínios ter sido problemática no início, logo ficou claro que Eukarya e Archaea são mais proximamente relacionados entre si do que são com Bacteria.

Tanto Bacteria quanto Archaea são caracterizados pelas chamadas células procarióticas, nas quais não há núcleo delimitado e há somente um cromossomo circular (além de uma porção de anéis de genes menores chamados de plasmídeos). Eukarya, por outro lado, possui um núcleo cercado de uma membrana que inclui muitos cromossomos lineares. Tanto a estrutura da membrana celular quanto vários genes indicam que Archaea e Eukarya são proximamente relacionados, mas ainda era um mistério se ambos os grupos evoluíram de um ancestral comum e seriam, portanto, grupos irmãos, ou se eucariontes evoluíram diretamente de arqueias e seriam, portanto, arqueias altamente complexas.

As coisas passaram a apontar para a segunda hipótese após várias proteínas originalmente consideradas exclusivas de eucariontes (as chamadas Eukaryotic Signature Proteins, ESPs) foram encontradas em representantes do clado TACK de Archaea. Contudo clados diferentes dentro de TACK possuíam ESPs diferentes, então as coisas continuaram incertas.

Então em 2015 um novo grupo de arqueias foi descoberto no oceano Ártico entre a Noruega e a Groenlândia perto de um campo de fontes hidrotermais ativas chamadas Castelo de Loki (Spang et al. 2015). Chamado de Lokiarchaeota, este novo grupo de arqueias continha um grande número de ESPs, incluindo muitas das encontradas em diferentes linhagens TACK. Lokiarchaeota apareceu como grupo irmão de eucariontes em reconstruções filogenéticas e indicou que os eucariontes evoluíram, de fato, de arqueias, e aparentemente de arqueias mais complexas que as conhecidas até então. Este grupo foi baseado unicamente em um genoma incompleto encontrado nos sedimentos, já que o organismo em si não foi encontrado e não pôde ser cultivado para confirmar a estrutura de suas células.

Em 2016, outra linhagem de arqueias foi descoberta através de um genoma encontrado no estuário o rio White Oak na costa atlântica dos EUA (Seitz et al., 2016). Chamado Thorarchaeota, este clado revelou ser proximamente relacionado a Lokiarchaeota e, portanto, aos eucariontes.

Reconstrução das possíveis rotas metabólicas encontradas em Thorarchaeota com base no genes (quadrados brancos) encontrados no genoma torarqueótico. Créditos a Seitz et al. (2016).

Então em 2017 muitos novos genomas foram encontrados nos mesmos ambientes nos quais Lokiarchaeaota e Thorarchaeota haviam sido encontrados e em muitos outros (Zaremba-Niedzwiedzka et al., 2017). Eles incluíam dois novos grupos proximamente relacionados a esses dois, os quais foram chamados de Odinarchaeota e Heimdallarchaeota. O grupo inteiro recebeu o nome de “arqueias Asgard” e reconstruções filogenéticas puseram Eukarya dentro dele, com Heimdallarchaeota sendo o grupo irmão de Eukarya.

Mas perguntas e dúvidas logo surgiram. Ainda em 2017, um novo artigo (Da Cunha et al., 2017) questionou estes achados e levantou a hipótese de que as reconstruções filogenéticas que punham Asgard e Eukarya juntos eram um artefato causado por atração de ramos longos, um efeito colateral de reconstruções filogenéticas no qual espécies de evolução rápida forçam clados distantemente relacionados a colapsarem num único clado. A remoção de algumas arqueias de evolução rápida da análise foi suficiente para quebrar a relação Asgard-Eukarya. Visto que os genomas de Lokiarchaeota e outros Asgards foram reconstruídos a partir de DNA ambiental e não de células únicas, havia a possibilidade de as amostras estarem contaminadas com material de outros organismos. Os genes de proteínas usados nas análises também pareciam ter origens divergentes e podem ter sido adquiridos por transferência horizontal de genes, quando um gene é transferido de um organismo para outro por meios que não a reprodução, geralmente através de vírus.

Os autores originais do clado Asgard, que propuseram sua proximidade com Eukarya, rejeitaram o criticismo de Da Cunha et al. (2017) e afirmaram que estes usaram metodologia inadequada e que não havia evidência de contaminação em suas amostras (Spang et al., 2018).

(MDS, isso tá virando uma briga de verdade. Pega a pipoca!)

Da Cunha et al. (2018) responderam novamente mostrando mais evidência de contaminação e dizendo que Spang et al. deveriam mostrar evidência de metodologia inadequada se fosse o caso.

Estudos posteriores continuaram encontrando sequências de eucariontes em novas amostras de Asgard, o que reduziu a probabilidade de contaminação (Narrowe et al., 2018).

Fournier & Poole (2018) discutiram as implicações da proximidade de Eukarya com Asgard e propuseram uma classificação na qual Asgard não era mais membro de Archaea, mas formava um domínio novo, Eukaryomorpha, junto com Eukarya. Eles fizeram uma analogia com os mamíferos evoluindo de sinapsídeos e como sinapíseos costumavam ser vistos como répteis mesmo não estando dentro do clado Reptilia (Sauropsida). O mesmo seria o caso de Asgard. Apesar de terem “cara de Archaea”, eles não seriam arqueias de verdade.

Uma topologia hipotética de “arqueias verdadeiras”, Asgard e Eukarya de acordo com Fournier & Poole (2018).

Em um estudo publicado em dezembro passado, Williams et al. (2019) reanalisaram o caso usando mais dados e recuperaram novamente a proximidade de Asgard com Eukarya. Com este acúmulo de evidências, a hipótese de Eukarya surgindo de dentro de Archaea se tornou mais forte.

Aí agora, poucos dias atrás, finalmente conseguimos o que tanto queríamos. Um grupo de cientistas japoneses (Imachi et al., 2020) finalmente isolou um organismo Asgard e pôde fazer uma cultura em laboratório. Mas foi um trabalho difícil. A cultura cresceu muito devagar, com a fase lag (a fase em que as células se adaptam ao ambiente e crescem até dividirem) durando até 60 dias!

As criaturas estavam crescendo em uma cultura mista com uma bactéria do gênero Halodesulfovibrio e uma arqueia do gênero Methanogenium. As células Asgard foram chamadas de Candidatus Prometheoarcheum syntrophicum. Em taxonomia de procariontes, uma espécie nova recebe o status de Candidatus quando não é possível mantê-la numa cultura estável.

As células desta espécie de Asgard são cocoides, isto é, esféricas, e frequentemente apresentam vesículas na superfície ou longas protrusões na membrana que podem ou não se ramificarem. Estas protrusões não se conectam entre si nem a outras células, diferente de estruturas similares em outras arqueias. As células não parecem conter qualquer estrutura similar a organelas no interior, indo contra as expectativas. Asgard ainda não é a célula com cara de eucarionte que estávamos esperando!

Várias imagens de microscopia eletrônica de Candidatus Prometheoarchaeum syntrophicum. Vesículas mostradas em e, f e protrusões em g, h. Créditos a  Imachi et al. (2020).

Graças à cultura desta espécie de Asgard, foi possível extrair seu genoma completo e confirmar o que era previamente conhecido de Asgard e baseado apenas em DNA ambiental. Isso confirmou a presença de 80 ESPs e, em uma análise filogenética, a espécie nova aparece como grupo irmão de Eukarya.

Candidatus Prometheoarcheum syntrophicum revelou ser anaeróbio e se alimentar de aminoácidos, quebrando-os em ácidos graxos e hidrogênio. Sua associação com os outros dois procariontes na cultura mista parece ser um tipo de mutualismo, com as três espécies se ajudando por transferência de hidrogênio de uma espécie para outra. Muitas perguntas sobre como um organismo assim se tornou uma célula eucarionte complexa ainda permanecem, mas ao menos temos mais algumas pistas sobre a aquisição da mitocôndria.

Hipótese da evolução da célula eucariótica baseada em uma relação mutualística entre uma arqueia do tipo Asgard e uma bactéria aeróbia. Créditos a  Imachi et al. (2020).

A hipótese mais amplamente aceita era a de que uma célula eucarionte primitiva havia engolfado uma bactéria aeróbia através de fagocitose para comê-la, mas acabou retendo-a dentro de si. Contudo, vendo a cooperação de nossa arqueia Asgard com outros procariontes levanta a hipótese de que talvez o mutualismo entre a célula pro-eucarionte e as bactérias aeróbias começou quando ainda eram organismos separados.

Será que algum dia vamos achar de vez o “verdadeiro” proto-eucarionte? Vamos esperar pelos próximos episódios.

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Referências:

Da Cunha V, Gaia M, Gadelle D, Nasir A, Forterre P (2017) Lokiarchaea are close relatives of Euryarchaeota, not bridging the gap between prokaryotes and eukaryotes. PLOS Genetics 13(6): e1006810. doi: 10.1371/journal.pgen.1006810

Da Cunha V, Gaia M, Nasir A, Forterre P (2018) Asgard archaea do not close the debate about the universal tree of life topology. PLOS Genetics 14(3): e1007215. doi: 10.1371/journal.pgen.1007215

Imachi H, Nobu MK, Nakahara N et al. (2020) Isolation of an archaeon at the prokaryote–eukaryote interface. Nature. doi: 10.1038/s41586-019-1916-6

Narrowe AB, Spang A, Stairs CW, Caceres EF, Baker BJ, Miller SC, Ettema TJG (2018) Complex Evolutionary History of Translation Elongation Factor 2 and Diphthamide Biosynthesis in Archaea and Parabasalids. Genome Biology and Evolution 10: 2380–2393. doi: 10.1093/gbe/evy154

Seitz KW, Lazar CS, Hinrichs KU, Teske AP, Baker BJ (2016) Genomic reconstruction of a novel, deeply branched sediment archaeal plylum with pathways for acetogenesis and sulfur reduction. ISME Journal 10: 1696–1705. doi: 10.1038/ismej.2015.233

Spang A, Saw JH, Jørgensen SL, et al. (2015) Complex archaea that bridge the gap between prokaryotes and eukaryotes. Nature 521: 173–179. doi: 10.1038/nature14447

Spang A, Eme L, Saw JH, Caceres EF, Zaremba-Niedzwiedzka K, et al. (2018) Asgard archaea are the closest prokaryotic relatives of eukaryotes. PLOS Genetics 14(3): e1007080. doi: 10.1371/journal.pgen.1007080

Williams TA, Cox CJ, Foster PG, Szőllősi GJ, Embley TM (2019) Phylogenomics provides robust support for a two-domains tree of life. Nature Ecology & Evolution. doi: 10.1038/s41559-019-1040-x

Zaremba-Niedzwiedzka K, Caceres EF, Saw JH et al. (2017) Asgard archaea illuminate the origin of eukaryotic cellular complexity. Nature 541:353–358. doi: 10.1038/nature21031

2 Comentários

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2 Respostas para “Todos nós viemos de Asgard

  1. Pingback: Os melhores (ou piores?) nomes científicos de 2020 | Natureza Terráquea

  2. Wesley Henrique Medeiros dos Santos

    Estou profundamente feliz e impressionado com a sua capacidade de escrever sobre descobertas fenomenais com uma linguagem que é profissional e, ao mesmo tempo, leve. Obrigado e parabéns! Excelente conteúdo!

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