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Planárias cabeça-de-martelo: outrora uma bagunça, agora uma bagunça ainda maior

por Piter Kehoma Boll

Poucas pessoas sabem que planárias terrestres existem, mas quando sabem, elas muito provavelmente conhecem as planárias-cabeça-de-martelo que compreendem a subfamília Bipaliinae.

As planárias-cabeça-de-martelo, ou simplesmente vermes-cabeça-de-martelo, têm esse nome porque suas cabeças possuem expansões laterais que as fazem lembrar um martelo, uma pá ou uma picareta. Dê uma olhada:

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O “verme-cabeça-de-martelo-errante”, Bipalium vagum. Note a cabeça peculiar. Foto do usuário budak do flickr.*

Os chineses conheciam os vermes-cabeça-de-martelo desde pelo menos o século X, o que é compreensível, visto que elas se distribuem do Japão até Madagascar, incluindo todo o sul e sudeste da Ásia, bem como a Indonésia, as Filipinas e outros arquipélagos. O mundo ocidental, no entanto, ouviu primeiro falar delas em 1857, quando William Stimpson descreveu as primeiras espécies e as pôs num gênero chamado Bipalium, do Latim bi- (dois) + pala (pá), devido ao formato da cabeça. Uma delas era a espécie Bipalium fuscatum, uma espécie japonesa que é atualmente considerada a espécie-tipo do gênero.

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Região anterior de Bipalium fuscatum, o “verme-cabeça-de-martelo-amarronzado”. Foto do usuário 根川大橋 da Wikimedia.**

Dois anos depois, em 1859, Ludwig K. Schmarda descreveu mais uma espécie, esta do Sri Lanka, e, sem ter conhecimento do artigo de Stimpson, chamou a espécie de Sphyrocephalus dendrophilus, criando o novo gênero para ela do grego sphȳra (martelo) + kephalē (cabeça).

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Dezenhos por Schmarda de Sphyrocephalus dendrophilus.

No ano seguinte, em 1860, Edward P. Wright fez algo similar e descreveu alguns vermes-cabeça-de-martelo da Índia e da China, criando um novo gênero, Dunlopea, para elas. O nome foi uma homenagem a seu amigo A. Dunlop (seja lá quem for).

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Desenho por Wright de Dunlopea grayia (agora Diversibipalium grayi) da China.

Eventualmente esses erros foram percebidos e todas as espécies foram postas no gênero Bipalium, junto com várias outras descritas nos anos seguintes. Todos os vermes-cabeça-de-martelo eram parte do gênero Bipalium até 1896, quando Ludwig von Graff decidiu melhorar a classificação e os dividiu em três gêneros:

1. Bipalium: com uma cabeça tendo longas “orelhas”, uma cabeça bem desenvolvida.
2. Placocephalus (“cabeça de placa”): com uma cabeça mais semicircular.
3. Perocephalus (“cabeça mutilada”): com uma cabeça mais curta, rudimentar, quase como se tivesse sido cortada fora.

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Compare as cabeças de espécies típicas de Bipalium (esquerda), Placocephalus (centro) e Perocephalus (direita), de acordo com Graff.

Este sistema, no entanto, foi logo abandonado e tudo voltou a ser simplesmente Bipalium e continuou assim por quase um século, mudando de novo apenas em 1998, quando Kawakatsu e seus amigos começaram a mexer com os pênis dos vermes-cabeça-de-martelo.

Primeiro, em 1998, eles criaram o gênero Novibipalium (“novo Bipalium”) para espécies com uma papila penial reduzida ou ausente, e mantiveram em Bipalium aquelas com uma papila penial “bem” desenvolvida. Vale ressaltar, no entanto, que essa papila bem desenvolvida não é muito maior que a papila reduzida de Novibipalium. Em ambos os gêneros o pênis verdadeiro, funcional, é formado por um conjunto de dobras do átrio masculino e não pela papila penial em si como acontece em outras planárias terrestres com papila penial.

Mais tarde, em 2001, Ogren & Sluys separaram mais algumas espécies de Bipalium em um gênero novo chamado Humbertium (homenageando Aloïs Humbert, que descreveu a maioria das espécies desse novo gênero). Elas foram separadas de Bipalium porque os ovovitelodutos (os dutos que conduzem os ovos e os vitelócitos) entram no átrio feminino pela frente, e não por trás como numa Bipalium típica. Essa separação é, na minha opinião, mais razoável que a anterior.

Agora tínhamos três gêneros de vermes-cabeça-de-martelo baseados em sua anatomia interna, mas várias espécies foram descritas sem qualquer conhecimento de seus órgãos sexuais. Assim, em 2002, Kawakatsu e seus amigos criaram mais um gênero, Diversibipalium (“o Bipalium diverso”) para incluir todas as espécies cuja anatomia dos órgãos sexuais era desconhecida. Em outras palavras, é um gênero “cesto de lixo” para colocá-las até que sejam melhor estudadas.

Mas será que esses três gêneros, Bipalium, NovibipaliumHumbertium, como agora definidos, são naturais? Ainda não sabemos, mas eu aposto que não. Uma boa maneira de conferir seria usando filogenia molecular, mas não temos pessoas trabalhando com esses animais em seu habitat natural, assim não temos material disponível para isso. Outra coisa que pode nos dar uma luz é olhar para sua distribuição geográfica. Podemos assumir que espécies geneticamente similares, especialmente de organismos com uma habilidade de dispersão tão baixa quanto planárias terrestres, ocorram todas na mesma região geográfica, certo? Então onde encontramos as espécies de cada gênero? Vamos ver:

Bipalium: Indonésia, Japão, China, Coreia, Índia.

Novibipalium: Japão.

Humbertium: Madagascar, Sri Lanka, Sul da Índia, Indonésia.

Estranho, né? Elas estão completamente misturadas e cobrindo uma enorme área do planeta, especialmente se considerarmos Humbertium. Podemos ver uma tendência, mas nada muito claro.

Felizmente, algumas análises moleculares foram publicadas (veja Mazza et al. (2016) nas referências). Uma, que incluiu as espécies Bipalium kewenseB. nobileB. adventitiumNovibipalium venosumDiversibipalium multilineatum, colocou Diversibipalium multilineatum bem perto de Bipalium nobile, e elas são de fato similares, então acho que podemos transferi-la de Diversibipalium para Bipalium, certo? Similarmente, Novibipalium venosum apaece misturada com as espécies de Bipalium. Acho que isso bagunça as coisas um pouco mais.

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Cabeça de algumas espécies de Bipalium, incluindo as usadas no estudo citado acima. Infelizmente, não consegui encontrar uma foto ou um desenho de Novibipalium venosum. Imagem por mim mesmo, Piter Kehoma Boll.**

Interessantemente, entre as espécies analisadas, a mais divergente foi Bipalium adventitium, cuja cabeça é mais “obtusa” que a das outras. Poderia a cabeça ser a resposta, afinal? Vamos esperar que alguém com os recursos necessários esteja disposto a resolver essa bagunça logo.

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Veja também:

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Referências:

Graff, L. v. (1896) Über das System und die geographische Verbreitung der Landplanarien. Verhandlungen der Deutschen Zoologischen Gesellschaft6: 61–75.

Graff, L. v. (1899) Monographie der Turbellarien. II. Tricladida Terricola (Landplanarien). Engelmann, Leipzig.

Kawakatsu, M.; Ogren, R. E.; Froehlich, E. M. (1998) The taxonomic revision of several homonyms in the genus Bipalium, family Bipaliidae (Turbellaria, Seriata, Tricladida, Terricola). The Bulletin of Fuji Women’s College Series 236: 83–93.

Kawakatsu, M.; Ogren, R. E.; Froehlich, E. M., Sasaki, G.-Y. (2002) Additions and corrections of the previous land planarians indices of the world (Turbellaria, Seriata, Tricladida, Terricola). The bulletin of Fuji Women’s University. Ser. II40: 162–177.

Mazza, G.; Menchetti, M.; Sluys, R.; Solà, E.; Riutort, M.; Tricarico, E.; Justine, J.-L.; Cavigioli, L.; Mori, E. (2016) First report of the land planarian Diversibipalium multilineatum (Makino & Shirasawa, 1983) (Platyhelminthes, Tricladida, Continenticola) in Europe. Zootaxa4067(5): 577–580.

Ogren, R. E.; Sluys, R. (2001) The genus Humbertiumgen. nov., a new taxon of the land planarian family Bipaliidae (Tricladida, Terricola). Belgian Journal of Zoology131: 201–204.

Schmarda, L. K. (1859) Neue Wirbellose Thiere beobachtet und gesammelt auf einer Reise um die Erde 1853 bis 1857 1. Turbellarien, Rotatorien und Anneliden. Erste Hälfte. Wilhelm Engelmann, Leipzig.

Stimpson, W. (1857) Prodromus descriptionis animalium evertebratorum quæ in Expeditione ad Oceanum, Pacificum Septentrionalem a Republica Federata missa, Johanne Rodgers Duce, observavit er descripsit. Pars I. Turbellaria Dendrocœla. Proceedings of the Academy of Natural Sciences of Philadelphia9: 19–31.

Wright, E. P. (1860) Notes on Dunlopea. Annals and Magazine of Natural History, 3rd ser.6: 54–56.

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