por Piter Kehoma Boll
Uma das grandes questões sem resposta em nosso conhecimento do mundo é “Quantas espécies há na Terra?” e nós estamos longe de ter ao menos uma aproximação do número real. Há, é claro, milhares de especulações, variando enormemente entre si, mas poderíamos dizer que o valor médio seria de cerca de dez milhões de espécies, enquanto atualmente conhecemos somente cerca de 1,5 milhão. E esse é exatamente o ponto no qual eu estou interessado em focar aqui: o número de espécies que conhecemos atualmente. Temos certeza de que tudo o que consideramos espécies de fato o são?
Provavelmente todo mundo já ouviu falar sobre a situação onde um grupo de organismos outrora considerados uma única espécie eram de fato duas distintas, como os elefantes africanos Loxodonta africana e L. cyclotis, onde o segundo só foi classificado como uma espécie distinta em 2010.
Quanto às pessoas no geral, se você lhes pedir para que digam o nome de um animal, elas provavelmente dirão o nome de um mamífero, ou talvez de uma ave, um réptil ou, se você tiver sorte, dirão “borboleta” ou “aranha” e isso é tudo. Bem, não há nada de errado com isso, mas eu acho que as pessoas deveriam se dar conta de que esses animais, como leões ou elefantes, são apenas uma partícula pequena de todo o mundo de espécies.
Eu no momento tenho uma bolsa de iniciação científica na Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), onde trabalho no IPP (Instituto de Pesquisa de Planárias) com ecologia, fisiologia e comportamento de planárias terrestres.
Para aqueles que não as conhecem (e eu sei que há muitas pessoas que não), planárias terrestres são vermes achatados terrestres, pertencentes ao filo Platyhelminthes, no grupo Tricladida. Elas geralmente são encontradas sob rochas ou troncos em áreas de floresta, mas também em jardins ou outros lugares. Muitas delas são muito sensíveis à luz, a altas temperaturas ou a extremos de seca e umidade, de forma que sua presença costuma indicar uma área mais conservada.
Planárias terrestres são um grupo ainda muito pouco conhecido e, apesar de um grande número de espécies ter sido descrito nas últimas décadas, muitas mais ainda precisam ser, e aquelas já descritas não são muito compreendidas no que condiz à sua ecologia e ao seu comportamento.
As primeiras planárias terrestres descritas foram definidas baseadas somente em características externas, principalmente forma do corpo, cor e disposição dos olhos. Mas Ludwig von Graff, em seu trabalho de 1986 “Über die Morphologie des Geschlechtesapparates der Landplanarien” (Sobre a morfologia do aparelho reprodutor das planárias terrestres) já percebia a importância da morfologia interna, principalmente a do aparelho copulador, para uma identificação mais precisa ao nível de espécie.
Apesar disso, os anos seguintes ainda foram marcados por publicações considerando somente aspectos externos, como o trabalho de Schirch (1929). Somente pelos anos 1950 um foco real passou a ser dado à estrutura de órgãos masculinos e femininos. A maioria dos trabalhos sobre a descrição de planárias terrestres, como os dos casais Marcus e Froehlich, focaram-se no aparelho copulador juntamente com características externas, dando assim uma descrição mais confiável de novas espécies. Nessa época, estruturas reprodutivas se tornaram essenciais para a classificação de novas espécies e eventualmente levaram à criação de novos gêneros.
Em 1990, Ogren e Kawakatsu publicaram um índice de todas as espécies de planárias terrestres conhecidas para a família Geoplanidae naquela época. Eles perceberam que muitas espécies ainda classificadas no gênero Geoplana, como as descritas por Schirch, nunca foram revistas e ainda eram conhecidas apenas por características externas, de forma que sua posição dentro de Geoplana poderia não estar correta. Para evitar essa classificação errônea, eles criaram um novo “gênero temporário”, o qual chamaram de Pseudogeoplana (falsa Geoplana) e puseram todas essas espécies duvidosas nele até que alguém as revisse e pudesse colocá-las no gênero correto, ou Geoplana ou algum outro.
Mas adivinhem? Ogren e Kawakatsu fizeram isso em 1990 e agora estamos em 2012 e a situação continua a mesma. Essas pobres espécies de planárias ainda estão esperando nesse abrigo taxonômico até que alguém as mova para o local a qual pertencem.
Assim como podemos ter certeza sobre qualquer coisa a respeito dessas espécies? Elas foram descritas em 1929, quase um século atrás, e ninguém se importou com elas desde então. E eu aposto que o mesmo ocorre em outros grupos menos fofos e atraentes, então enquanto descrevemos centenas ou milhares de espécies novas todo ano, outras centenas e milhares são deixadas para trás, esquecidas em vidros empoeirados de museus de zoologia pelo mundo.
Eu só espero que isso mude algum dia.
Obrigado por ler.
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Referências:
Baptista, V., & Leal-Zanchet, A. 2005. Nova espécie de Geoplana Stimpson (Platyhelminthes, Tricladida, Terricola) do sul do Brasil Revista Brasileira de Zoologia, 22 (4), 875-882 DOI: 10.1590/S0101-81752005000400011
Du Bois-Reymond Marcus, E. 1951. On South American Geoplanids. Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Série Zoologia, 16, 217-256.
Froehlich, E. M. 1955. Sobre Espécies Brasileiras do Gênero Geoplana. Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Série Zoologia, 19, 289-339.
Graff, L. v. 1896. Über die Morphologie des Geschlechtsapparates der Landplanarien. Verhandlungen der Deutschen Zoologischen Gesellschaft, 73-95.
Marcus, E. 1951. Turbellaria Brasileiros. Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Série Zoologia, 16, 5-215.
Mora, C., Tittensor, D., Adl, S., Simpson, A., & Worm, B. 2011. How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? PLoS Biology, 9 (8) DOI: 10.1371/journal.pbio.1001127
Ogren, R. E. & Kawakatsu, M. 1990. Index to the species of the family Geoplanidae (Turbellaria, Tricladida, Terricola) Part I: Geoplaninae. Bulletin of Fuji Women’s College, 28, 79-166.
Rohland, N., Reich, D., Mallick, S., Meyer, M., Green, R., Georgiadis, N., Roca, A., & Hofreiter, M. 2010. Genomic DNA Sequences from Mastodon and Woolly Mammoth Reveal Deep Speciation of Forest and Savanna Elephants PLoS Biology, 8 (12) DOI: 10.1371/journal.pbio.1000564
Schirch, P. F. 1929. Sobre as planarias terrestres do Brasil. Boletim do Museu Nacional, 5, 27-38.
Vou apenas ajuda-lo para saberem mais sobre a alimentação da planaria Luteostriata abundans. Crio minhocas para usa-las como isca e observei que esta planaria estava grudada em duas minhocas. Então a planaria Luteostriata abundans alimenta-se não apenas de tatuzinho-de-jardim, mas também de minhocas, e as minhocas estavam vivas quando vi a planaria atacando-as, e logo depois morreram. obs: Moro no Parana.
Luteostriata abundans não ocorre no Paraná. Só há registros dela para a região metropolitana de Porto Alegre e proximidades. Além disso, tenho certeza de que elas não se alimentam de minhocas, pois pesquiso dieta de planárias terrestres e L. abundans jamais se interessou por minhocas.
Você a deve estar confundindo com a Dolichoplana carvalhoi, uma espécie exótica que se alimenta de minhocas e cuja coloração lembra ligeiramente a de L. abundans. Aqui uma fotografia de D. carvalhoi: https://fbcdn-sphotos-a-a.akamaihd.net/hphotos-ak-xaf1/v/t1.0-9/1549250_1124421324250302_988756934735775522_n.jpg?oh=52f52dfc9a76490557fbc93522551038&oe=55AB53AA&__gda__=1437273300_cbfc430ede6446404073209d36885d2a
gostaria de saber, se causam algum tipo de doença em seres humanos?
Não. Planárias terrestres são predadoras, não parasitas.
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