A fabulosa aventura taxonômica do gênero Geoplana

por Piter Kehoma Boll

Planárias aquáticas são animais relativamente bem conhecidos por seu formato de flecha e dois olhinhos vesgos fofos. Planárias terrestres estão longe de terem toda a fama de suas primas aquáticas e muitas pessoas sequer sabem que elas existem. Talvez em parte isso seja resultado de estudos mais aprofundados sobre o mundo natural terem se originado na Europa, um continente onde planárias terrestres quase não existem. O primeiro destes animaizinhos a ser conhecido foi descrito em 1774 pelo naturalista dinamarquês Otto Friedrich Müller. Ele chamou o pequeno verme de Fasciola terrestris, pois pensou que se tratava de uma versão terrestre do verme parasita. Tratava-se de um pequeno verme cilíndrico, de dorso escuro e dois pequenos olhos na região anterior.

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Em 1788, o naturalista Johann Friedrich Gmelin transferiu a espécie para o gênero Planaria, descrito em 1776 por Müller. O verme agora se chamava, portanto, Planaria terrestris. O gênero, neste período, incluía tudo o que hoje se conhece como planária: vermes cuja boca se localiza no ventre, perto da região central do corpo. Provavelmente o termo se espalhou neste período e assim continua até hoje como um nome geral para estes animais.

Planaria_terrestris

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Planárias com muitos olhos foram transferidas em 1831 pelo naturalista Christian Gottfried Ehrenberg para um gênero novo, Polycelis. O termo significa “muitos pontos” e se refere aos pontos escuros que os olhos representam sobre o corpo.

Planaria_terrestris2

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Durante a viagem de Charles Darwin ao redor do mundo a bordo do Beagle, ele desembarcou na Mata Atlântica brasileira e encontrou várias espécies de planárias terrestres. Ele as classificou no gênero Planaria, mas salientou que formariam uma seção dentro do gênero pelo fato de serem terrestres, terem corpos mais convexos e muitas vezes com faixas coloridas. A primeira espécie nova listada por ele foi chamada de Planaria vaginuloides e foi coletada nas florestas do Rio de Janeiro. O epíteto vaginuloides foi escolhido porque Darwin as achou parecidas com lesmas do gênero Vaginulus.

Planaria_vaginuloides

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Um ano depois, em 1845, o naturalista Émile Blanchard encontrou uma espécie no Chile e a chamou de Polycladus gayi. O nome do gênero, Polycladus, faz referência ao intestino muito ramificado destes animais, enquanto o epíteto gayi homenageia o naturalista Claudio Gay. Só que Blanchard cometeu um erro grave: ele confundiu as extremidades anterior e posterior do animal e assim pensou que a abertura genital se encontrava na frente da boca!

Polycladus_gayi

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Em 1850, o naturalista Karl Moriz Diesing transferiu as planárias terrestres de Darwin para o gênero Polycelis pelo fato de elas possuírem vários olhos. Planaria vaginuloides agora era Polycelis vaginuloides.

Polycelis_vaginuloides

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Em 1851 o zoólogo Joseph Leidy encontrou outra espécie de planária terrestre na Europa, também pequena, cilíndrica e com dois olhos. Ele a chamou de Rhynchodemus sylvaticus. O termo Rhynchodemus significa algo como “corpo em forma de bico”. Ele sugeriu também a transferência de Planaria terrestris para o novo gênero, passando então a ser Rhynchodemus terrestris. As espécies de Darwin e Blanchard seguiram como Polycelis e Polycladus.

Rhynchodemus

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Então em 1857 uma coisa engraçada aconteceu: Uma nova revisão de planárias foi feita por William Stimpson. Ele, pela primeira vez, separou as planárias terrestres das aquáticas e as dividiu em duas famílias:

  1. Polycladidae: compreendendo apenas o gênero Polycladus pelo fato de ainda se pensar, nesta época, que o orifício genital ficava antes da boca.
  2. Geoplanidae: com o resto das planárias terrestres. As espécies nesta família foram divididas em três gêneros:
  • Rhynchodemus: espécies com dois olhos;
  • Bipalium: um gênero para espécies recentemente descobertas que possuem a cabeça em forma de meia-lua ou martelo. O nome vem do latim bi-, dois e pala, pá.
  • Geoplana: espécies com vários olhos. A palavra veio de uma junção de geo, terra e plana, pelo formato plano destes bichos, além de uma referência direta ao gênero Planaria, agora restrito a espécies aquáticas. A espécie Polycelis vaginuloides se tornou Geoplana vaginuloides. Chegamos, assim, ao gênero central desta história.
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Por uma coincidência gigantesca, neste mesmo ano de 1857, o naturalista Max Schultze, baseado em informações da literatura e das novas espécies coletadas no Brasil pelo naturalista Fritz Müller, também decidiu separar as planárias terrestres em outro gênero e também escolheu o nome Geoplana! Quais são as chances de isso acontecer? As publicações de Stimpson e de Schultze tinha algumas semanas de diferença e tudo indica que Schultze não tinha conhecimento da publicação de Stimpson. A diferença principal entre as duas é que Schultze ignorava o conhecimento das espécies classificadas como Bipalium. Ele também transferiu todas as planárias terrestres para Geoplana, de forma que Polycladus gayi, Rhynchodemus sylvaticus e Rhynchodemus terrestris eram agora Geoplana gayi, Geoplana sylvatica e Geoplana terrestris.

Geoplana_vaginuloides2

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O sistema de Stimpson, no entanto, prevaleceu, e os quatro gêneros seguiram em uso: Rhynchodemus, Bipalium, Geoplana e Polycladus. Entre as espécies descritas por Schultze e Müller estava Geoplana subterranea, uma espécie albina e sem olhos encontrada dentro da terra, que se alimenta de minhocas. Em 1861, Diesing decidiu separar esta espécie num gênero próprio, Geobia. Tínhamos agora 5 gêneros: Rhynchodemus, Bipalium, Geoplana, Geobia, Polycladus.

Geobia

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Em 1877, Henry Nottidge Moseley descreveu uma série de espécies da Oceania e do sudeste asiático. Boa parte delas foram incluídas no gênero Geoplana, mas algumas delas foram por ele inseridas em dois novos gêneros:

  1. Dolichoplana (“plana comprida”): espécies bastante compridas e estreitas com dois olhos como em Rhynchodemus;
  2. Caenoplana (“plana recente”): espécies que ele considerou serem intermediárias entre Geoplana e Dolichoplana pelo corpo ser mais alongado e os numerosos olhos serem restritos às laterais do corpo.
Caenoplana

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Dez anos depois, em 1887, J. J. Fletcher e A. G. Hamilton estudaram planárias terrestres australianas e concluíram que não havia necessidade de as espécies chamadas de Caenoplana por Moseley formarem um gênero separado e as uniram a Geoplana.

Geoplana

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Durante a década seguinte, o naturalista Arthur Dendy descreveu diversas espécies novas da Austrália e da Nova Zelândia, classificando todas no gênero Geoplana. O gênero ia crescendo, passando a compreender dezenas de espécies. Nos últimos anos do século XIX, diversos gêneros novos foram criados, muitos deles pelos trabalhos do zoólogo Ludwig von Graff.  Estes gêneros novos foram criados para espécies que possuíam características bem peculiares da anatomia, como uma cabeça diferenciada, por exemplo. Mesmo assim, o gênero Geoplana continuava crescendo. Qualquer planária achatada com muitos olhos que não possuísse uma característica bem distinta era jogada neste gênero. Este sistema seguiu por boa parte do século XX. Dezenas de espécies novas foram descritas pela zoóloga Libbie Hyman e por dois casais de zoólogos: os Marcus – Ernst Marcus e Eveline du Bois-Reymond Marcus – e os Froehlich – Claudio Gilberto Froehlich e Eudóxia Maria Froehlich. Estas espécies novas foram em sua maioria incluídas em Geoplana. O gênero nesta época era amplamente distribuído na América do Sul e na Austrália.

Geoplana2

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Durante este tempo, E. M. Froehlich definiu que Geoplana vaginuloides seria a espécie-tipo do gênero Geoplana. Talvez você agora esteja se perguntando “que é uma espécie-tipo?”. Bem, em taxonomia, quando um gênero novo é criado, uma das espécies do gênero precisa ser considerada a espécie-tipo, que é a espécie “modelo” do gênero. É ela quem determina o que o gênero é. Uma vez que uma espécie se torna o tipo do gênero, ela não pode jamais passar para outro gênero, a não ser que o gênero inteiro deixe de existir. Afinal, ela é a espécie na qual a existência do gênero é baseada. Acontece que nos séculos XVIII e XIX não existia ainda essa política da espécie-tipo, a qual foi só posteriormente introduzida nas regras para a nomenclatura de organismos. Assim, Stimpson, ao criar o gênero Geoplana, não definiu uma espécie-tipo. E. M. Froehlich optou por definir Geoplana vaginuloides como a espécie-tipo porque era a primeira espécie na lista de Stimpson e a proposta foi aceita pela comunidade científica. Voltemos então ao assunto central. Como dito, o gênero Geoplana foi acumulando mais e mais espécies ao longo do século XX, tornando-se enorme. Então em 1990, os zoólogos Robert Ogren e Masaharu Kawakatsu decidiram pôr ordem na casa. Através de análises da anatomia interna das planárias, eles excluíram do gênero Geoplana todas as espécies da Oceania e proximidades, pois estas têm testículos localizados na região ventral do corpo, diferente das espécies da América do Sul, que os têm na região dorsal. Mesmo assim, deixar todo o pacote da América do Sul dentro de Geoplana ainda mantinha a bagunça. Assim, eles quebraram o gênero em vários gêneros menores. Os quatro gêneros principais foram definidos a partir de duas características do aparelho copulador: 1) Presença ou ausência de papila penial, isto é, pênis. Existem planárias que possuem pênis e outras que não possuem. 2) Posição dos ovidutos, isto é, os canais que levam os ovos dos ovários até uma cavidade chamada átrio feminino. Os ovidutos podem desembocar no átrio feminino pelo lado dorsal ou pelo lado ventral. A classificação destas duas características leva a quatro combinações possíveis:

  1. Espécies com papila penial e ovidutos desembocando dorsalmente. Estas espécies continuaram no gênero Geoplana, porque essa é a combinação que ocorre em Geoplana vaginuloides.
  2. Espécies com papila penial e ovidutos desembocando ventralmente. Estas espécies passaram para o gênero Gigantea.
  3. Espécies sem papila penial e ovidutos desembocando dorsalmente. Estas foram chamadas de Notogynaphallia.
  4. Espécies sem papila penial e ovidutos desembocando ventralmente. O extremo oposto do que é encontrado em Geoplana, estas espécies passaram para um gênero chamado Pasipha.

Geoplana3

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As coisas estavam começando a ficar mais ordenadas. Apesar de ainda ter mais de cem espécies, o gênero Geoplana era um pouco mais homogêneo agora. Mas no início do século XXI, estudos mais detalhados da anatomia interna das planárias demonstraram que outras partes do corpo também tinham importância taxonômica. Além disso, estudos moleculares agora eram disponíveis e o gênero foi posto à prova na filogenia molecular. O resultado já esperado foi confirmado. Um estudo de filogenia molecular realizado por Fernando Carbayo e colaboradores em 2013 revelou que o gênero Geoplana como definido por Ogren e Kawakatsu se mantinha sendo uma bagunça. As espécies se separaram em diversos grupos que precisaram ganhar seus próprios gêneros. Estes gêneros novos saídos de Geoplana foram: Barreirana, Cratera, Matuxia, Obama e Paraba.

Geoplana4

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No final a espécie-tipo, Geoplana vaginuloides, ficou quase sozinha. A única outra espécie que se agrupou com ela foi Geoplana chita. O gênero Geoplana, outrora com centenas de espécies espalhadas pelo mundo inteiro, agora só tem duas espécies restritas à Mata Atlântica entre o Rio de Janeiro e o Paraná. E adivinhem qual destes gêneros novos ficou com a maior parte das espécies outrora em Geoplana?

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Obama

Yes, we can!

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Referências:

Carbayo, F.; Álvarez-Presas, M.; Olivares, C. T.; Marques, F. P. L.; Froehlich, E. M.; Riutort, M. 2013. Molecular phylogeny of the Geoplaninae (Platyhelminthes) challenges current classification: proposal of taxonomic actions. Zoologica Scripta, 42: 508-528.

Darwin, C. 1844. Brief description of several terrestrial planariae, and of some remarkable marine species, with an account of their habits. Annals and Magazine of Natural History, Annales de Sciences Naturelles, 14: 241-251.

Diesing. K. M. 1850. Systema helminthum. Academia Caesareae Scientiarium.

Fletcher, J. J.; Hamilton, A. G. 1887. Notes on Australian land-planarians, with descriptions of some new species. Part I. Proceedings of the Linnean Society of New South Wales, 2: 349-374.

Froehlich, E. M. 1955. Sôbre espécies brasileiras do gênero GeoplanaBoletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Série Zoologia, 19: 289-339.

Gay, Claudio. 1849. Historia fisica y politica de Chile. Vol. 3.

Gmelin, O. F. 1788. Systema Naturae. Moseley, H. N. 1877. Notes on the structure of several forms of land planarians with a description of two new genera and several new species, and a list of all species at present known. Quarterly Journal of Microscopical Sciences, 17: 274-292.

Ogren, R.; Kawakatsu, M. 1990. Index to the species of the family Geoplanidae (Turbellaria, Tricladida, Terricola) Part I: Geoplaninae. Bulletin of Fuji Women’s College, 28: 79-166.

Schultze, M.; Müller, F. 1857. Beiträge zur Kenntnis der Landplanarien. Abhandlungen der Naturforschenden Gesellschaft zu Halle, 4: 61-74.

Stimpson, W. 1857. Prodromus descriptionis animalium evertebratorum quae in expeditione ad Oceanum, Pacificum Septentrionalem a Republica Federata missa Johanne Rodgers Duce, observavit et descripsit. Pars I. Turbellaria Dendrocoela. Proceedings of the Academy of Natural Sciences of Philadelphia, 19-31.

7 Comentários

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7 Respostas para “A fabulosa aventura taxonômica do gênero Geoplana

  1. victorghirotto

    Cara, parabéns, isso ficou SENSACIONAL! De verdade, nunca vi um trabalho historico e simples desses nessa qualidade. De verdade, parabéns, vc colocou a história de um grupo inteiro em uma linguagem muito simples e interessante também pro público leigo. Simplesmente fantástico, dá vontade de fazer/ver isso pra todos os táxons. Vou agora correndo fuçar o seu site!! Hahaha!

  2. victorghirotto

    Opa Piter tudo bem?
    Cara, tentei fixar umas Geoplanidae aqui no lab de tudo que é jeito e elas sempre se desfazem!
    Como é a fixação desses bichos?
    Obrigado, grande abraço,
    Victor

    • Piter Keo

      Olá, Victor!
      Aqui no laboratório fazemos o seguinte:
      1. Colocamos o animal numa placa de Petri e jogamos água fervendo na placa, não diretamente sobre o animal para não correr o risco de jogá-lo para fora da placa. Isso faz com que ele morra instantaneamente. Se o objetivo for fazer o processamento histológico, é importante que a planária esteja reta na placa na hora da morte, para facilitar os cortes posteriormente.
      2. Viramos a placa com cuidado para derramar a água, tomando o cuidado para que o animal fique dentro. Às vezes ele gruda no fundo, tornando mais fácil se livrar da água. É preferível não tocar no animal com nada nesse momento, porque a superfície fica bem grudenta e ele pode ficar preso a um pincel ou pinça.
      3. Cobrimos o animal com formol a 10% e deixamos assim por 24 horas.
      4. Por fim, removemos o animal do formol com um pincel ou pinça (tomando cuidado para não danificá-lo) e guardamos num tubo de ensaio com etanol a 70%.

      Caso tenha mais alguma dúvida é só perguntar.
      Abraço

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